Israel Souza[1]
Na semana passada, um
fato político ganhou as manchetes dos jornais e suscitou reações diversas no
Acre. Márcia Bittar - pré-candidata a uma vaga no Senado e esposa do senador
Márcio Bittar - deu a seguinte declaração: “a escola precisa ensinar as disciplinas técnicas: português,
matemática, ciência, geografia, enfim as disciplinas e não querer educar os
filhos da gente em cima de ideologias, de gênero por exemplo, ensinar que a
menina pode casar com o pai, ensinar que a criança pode casar com adulto,
ensinar que pode ter relação sexual com animal, ensinar que pode legalizar o
aborto, a droga. Essas coisas precisam ser combatidas dentro da nossa escola”.
Como se vê, em resumidas
contas, ela fez uma tripla insinuação/acusação contra nossas escolas e nossos professores:
incesto, pedofilia e zoofilia.
De minha parte, professor,
pesquisador e escritor habituado a tirar lições mesmo do que há de mais
repugnante na política, confesso que tive receio de fazê-lo em relação às
palavras da senhora Márcia Bittar. Contudo, é esse desafio que enfrento nas
linhas seguintes.
Antes do mais, importa destacar
o quanto suas palavras estão em pleno acordo com o que é feito pelo grupo
político a que ela pertence, grupo formado por Bolsonaro e seu marido Márcio
Bittar, dentre outros. Como se sabe, esse é um grupo pouco afeito à verdade e
dado a irresponsabilidades sem conta. É da índole deles fazer política como
quem faz guerra, criando inimigos muitos, tratando-os como seres sórdidos que
precisam ser parados a todo custo. E, claro, eles se colocam como os únicos
capazes de parar os inimigos sórdidos por eles criados.
Entre os alvos favoritos desta
guerra suja que movem, ininterrupta e sistematicamente, estão a educação e os
educadores. Daí estes serem sempre acusados de aliciarem politicamente e
perverterem sexualmente as crianças e os jovens. Com efeito, as insinuações/acusações
de Márcia Bittar poderiam nos levar a crer que há coisas nas escolas que não
seriam ofertadas sequer nas mais libertinas das casas de tolerância, como o
incesto e a zoofilia. E, neste caso, os professores exerceriam um ofício mais
repugnante que o de qualquer proxeneta.
Na base disso tudo, está implícito
o suposto de que os professores seriam militantes disfarçados,
esquerdistas-comunistas fazendo política albergados pelo ofício. Sem pretender
fazer uma reflexão epistemológica, devo dizer que, de fato, nós educadores
fazemos política. Impossível não fazê-lo. Afinal, através de disciplinas como
Filosofia, Geografia, História e Sociologia, procuramos formar cidadãos,
capacitando nossos estudantes para que, diante das instituições, dos temas e
dos acontecimentos sociais, possam saber se orientar e se posicionar.
Neste preciso sentido, fazemos
política, sim. Mesmo um professor de Matemática ou Física o faz, discuta ou não
temas sociais em sala de aula, pois até o silenciar-se sobre tais temas é já
uma maneira de educar politicamente os estudantes. Todo educador é também um
político. Todavia, é mister acrescentar que não fazemos política partidária.
Embora tenhamos uma margem de liberdade no trato dos temas, movemo-nos sempre
premidos pelo que é ditado pela nossa área de atuação, como sua tradição,
autores, métodos etc. Entre outras coisas, orienta-nos, ainda, o que é exigido
dos estudantes em concursos e processos seletivos, como o Enem.
A essa altura, compete dizer
que, se é verdade que todo educador é um político, todo político é também um
educador. Mesmo não tendo cargo, através de suas declarações, a senhora Márcia
Bittar influencia a sociedade, orientando-a diante de certos temas. Por
conseguinte, para o bem e para o mal, também ela é uma educadora. Mas os pontos
em comum entre a práxis de educador e a de político não são tantos que possam
apagar os pontos de diferença.
Nós, educadores, pautamo-nos
pela verdade dos fatos. Zelosos que somos quanto a nosso fazer científico,
procuramos guardar silêncio quanto ao que não sabemos ou, no máximo, emitimos
parecer que não extrapole o âmbito da responsabilidade. Por outro lado, quando um
político vai disputar eleições, se a mentira lhe garantir mais votos que a verdade,
não é raro ele optar pela primeira.
Um exemplo para ilustrar mais
palpavelmente a diferença entre ambos os ofícios discutidos. Sabemos quão
danosos para a democracia são os políticos carreiristas que “vivem da
política”, como diz Max Weber (um sociólogo conservador, só para frisar), que
fazem dela um meio de vida; assim como são aqueles que criticam as políticas
sociais e o funcionalismo público, mas costumam colocar parentes seus mamando
nas tetas do Estado; os políticos forasteiros que moram em dado estado, mas
procuram lançar candidaturas por outro, onde acham que é mais fácil sair
vitorioso do pleito; políticos que têm o hábito de se meter em coisas
nebulosas, como orçamentos secretos, por exemplo.
Ora, bem sabemos que há aos
montes esse tipo de político (e sabemos quem são os “daqui” do Acre). Mas
faríamos mal se disséssemos que todos os políticos são desse naipe. Não apenas
estaríamos deixando de fazer ciência, como cairíamos na mais deslavada mentira,
como fazem certas pessoas quando querem se aproveitar da boa vontade de certos
setores da sociedade, aqueles que, em razão da vulnerabilidade, têm mais
dificuldade de discernir o que verdadeiro do que é falso.
Para finalizar, duas coisas
mais. Primeiro: pode ser que algum docente, extrapolando seu ofício, faça
política partidária em sala de aula - em todo lugar há bons e maus
profissionais. Problemas dessa ou de outra natureza podem ser resolvidos na
própria escola ou, se aí falhar, em órgãos fiscalizadores como o Ministério
Público. Se a senhora Márcia Bittar tem provas daquilo que insinuou a respeito
das escolas e dos professores, ela tem o dever de trazê-las a público e apresentá-las
a essas autoridades.
Por fim, em razão da
complexidade e da relevância social, importa registrar que a educação é um
daqueles temas de que só se pode falar e tratar com boca e mãos limpas. Não somos
perfeitos. Temos nossas limitações. Por isso, se honesta, toda crítica é
bem-vinda. Sempre. O mesmo não podemos dizer da insinuação baixa e abjeta. Nunca.
Para usar a linguagem do educador popular, digamos de uma vez: “muito ajuda
quem não atrapalha”.
[1]
Professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul.
Autor das seguintes obras: Democracia no
Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014); Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias
facínora (EDIFAC, 2018) e A política
da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021). É coordenador do
Grupo de Pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia
(TRATEPAM) e, atualmente, desenvolve o Projeto de Pesquisa Os dois Acres: disputas “ideodiscursivas” e identidade(s) nas
mesorregiões acreanas. No campo da poesia, publicou o livro E a carne se fez verbo... (EaC Editor,
2020).