quinta-feira, 14 de julho de 2011

A crítica de todas as formas de conciliação entre classes

Por Demétrio Cherobini, no Correio da Cidadania

...dar coragem aos escravos e horrorizar os déspotas.

Walt Whitman

Uma grande e terrível mistificação se generaliza tomando conta da esquerda brasileira contemporânea. Ela promove a crença de que o Estado é uma realidade à parte em relação ao capital, que pode, com seus "super poderes", controlar e subjugar esse sistema, e que deve, por tais motivos, ser considerado o instrumento fundamental das classes exploradas para a realização da sua efetiva emancipação. A conclusão prática que os ideólogos, desgraçadamente, extraem desse capcioso raciocínio é a de que a tarefa precípua dos trabalhadores consiste em usar as vias disponíveis – os processos eleitorais situados nos marcos da famigerada democracia burguesa - para ocupar as posições importantes do Estado e usá-las, em seguida, para "enquadrar", em benefício próprio, o seu inimigo comum.

Os resultados da práxis política amparada por tal concepção são perturbadores: desprezo pela necessidade de organização e de conscientização das classes trabalhadoras sobre as contradições que lhe compõem o ser; respeito absoluto ao imperativo de manter em "paz" a antagônica estrutura de relacionamento social vigente; descarte da idéia de revolução social em favor de alianças partidárias espúrias e reformas políticas que apenas aliviam os conflitos e acomodam entre si as classes do atual sistema; aviltamento do projeto histórico de concretização de uma comunidade humana emancipada, sob a responsabilidade auto-gestora dos "produtores livremente associados", em função do objetivo de fomentar, entre os trabalhadores, a mera posse de mercadorias e o seu consumo exacerbado.

István Mészáros, em Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo: Boitempo, 2002), nos convida a buscar uma alternativa radical e viável em relação a esse perigoso caminho. Baseando-se em profunda análise da crise estrutural do capital, o filósofo desenvolve uma crítica sem concessões dos múltiplos fetiches inerentes a esse sistema - incluindo-se aí o Estado e a produção e o consumo de mercadorias -, acompanhada de uma estratégia política coerente com vistas a auxiliar os trabalhadores do mundo em suas lutas por emancipação.

São inúmeras as contribuições presentes na obra. A que talvez se possa destacar em primeiro lugar é a conceituação do capital como um complexo de mediações de segunda ordem – a saber: os meios alienados e os objetivos fetichistas de produção, o trabalho "estruturalmente separado da possibilidade de controle", o dinheiro, a família nuclear, o mercado mundial e as várias formas de Estado do capital – que se afirma sobre as mediações de primeira ordem da atividade produtiva, subordinando-as hierarquicamente e compondo com elas uma dinâmica orientada pelo imperativo da "mais elevada extração praticável do trabalho excedente", num movimento sempre acumulativo, expansivo, "automático" - no sentido de que esse processo se desenvolve sem que a coletividade humana consiga controlá-lo conscientemente – e, hoje mais do que nunca, perdulário e destrutivo.capital passou, primeiramente, por um longo período histórico de ascendência que culminou na dominação, por parte desse brutal sistema de exploração de trabalho excedente, de toda a superfície do globo terrestre. Enquanto essa fase ascendente perdurou, o capital conseguiu lidar com as suas crises inevitáveis por meio de rearranjos internos de suas mediações constituintes, de ações "harmonizadoras" do Estado, de deslocamentos de contradições e da imposição de suas formas de sociabilidade a outros povos e nações.


Nesse contexto, diz Mészáros, o Estado não é nada mais do que o elemento cuja especificidade consiste em promover a retificação - isto é, a "harmonização" momentânea - dos "microcosmos antagonicamente estruturados" que configuram o capital. Ele se situa no interior do complexo em questão, participando ativamente do deslocamento das contradições - alguns dos "limites relativos" - inerentes a tal sistema. Por esse motivo, afirma o filósofo, é equivocado tomar o Estado como uma entidade apartada do capital, capaz de impor-lhe rédeas e de frear o seu ímpeto fetichista. O Estado contemporâneo não está além do capital; ele não passa, em realidade, de um dos componentes principais de sua base material: esta é a primeira lição importante que o grande livro de Mészáros nos traz.

O filósofo húngaro elabora suas categorias a partir de um diálogo crítico com autores de ampla envergadura teórica, tais como Hegel, Marx, Lukács, Adam Smith, Schumpeter, Hayek, Paul Baran e Paul Sweezy, entre outros, e avança no sentido de realizar uma "análise concreta da conjuntura concreta" da formação social vigente em nossos dias. Nesse trajeto, esmiuça e desvenda as determinações fundamentais da crise estrutural do capital, uma nova situação histórica que, na sua visão, abre a possibilidade objetiva para a superação do atual "sistema de controle sócio-metabólico" em direção a um modo qualitativamente diferente de organização comunitária, na qual os "produtores livremente associados" se tornam os responsáveis conscientes pela regulação sustentável do metabolismo social. O que vem a ser, pois, essa crise estrutural?

Mészáros explica que a formação do capital passou, primeiramente, por um longo período histórico de ascendência que culminou na dominação, por parte desse brutal sistema de exploração de trabalho excedente, de toda a superfície do globo terrestre. Enquanto essa fase ascendente perdurou, o capital conseguiu lidar com as suas crises inevitáveis por meio de rearranjos internos de suas mediações constituintes, de ações "harmonizadoras" do Estado, de deslocamentos de contradições e da imposição de suas formas de sociabilidade a outros povos e nações.

Com o planeta inteiro assim conquistado, uma nova etapa histórica teve início, na qual já não é mais possível ao sistema exportar os seus antagonismos da maneira como antes fazia. Como conseqüência, alguns dos elementos contraditórios, que outrora alimentavam o movimento ascendente do capital, tornam-se "disfuncionais" em relação a essa macro-estrutura e passam a ameaçar a sua viabilidade enquanto modo de controle dominante sobre a atividade produtiva.

É então que o capital vê ativados os seus "limites absolutos", isto é, os limites que não podem ser transcendidos se não se altera por completo o próprio "macrocosmo" de relacionamento social que lhe serve de fundamento. A crise estrutural de que Mészáros fala é justamente essa nova modalidade histórica de crise – diferente das anteriores, ocorridas na fase de ascendência do capital -, onde o sistema já não dispõe da possibilidade de expulsar para longe os seus "limites relativos" e onde alguns dos antagonismos que no passado concorreram para a sua reprodução no tempo e no espaço começam a obstaculizar sua dinâmica acumulativa e expansiva.

Isso tudo, continua o filósofo, acaba por engendrar enorme variedade de percalços, desde complicações no processo de "valorização do valor" (e a conseqüente emergência do antivalor) até a alteração, num sentido decrescente, da taxa de utilização das mercadorias. Para tentar lidar com os efeitos desses problemas, o sistema é forçado a efetivar uma forma de produção essencialmente destrutiva, isto é, que atribui à destrutividade – elemento intrínseco ao capital desde os seus primórdios, mas que, até então, não era dominante – o papel de "princípio orientador" do trabalho.

A produção destrutiva, de que fala Mészáros – ao contrário da destruição produtiva, vigente no passado e teorizada por Schumpeter -, se expressa de muitas maneiras: na precarização do trabalho (camuflada, muitas vezes, ideologicamente, sob o rótulo enganador de flexibilização), na degradação ambiental, na obsolescência planejada – mercadorias produzidas para, num curtíssimo espaço de tempo, se tornarem obsoletas, a fim de serem substituídas por novas mercadorias – e no "complexo militar-industrial", setor chave da economia mundial, onde as mercadorias – artefatos bélicos etc. – se destroem no ato imediato do seu consumo.

O filósofo ressalta que o surgimento da crise estrutural não quer dizer que o sistema esteja em vias de desaparecimento, ou que vá implodir, em breve, por conta própria. O que em verdade ocorre, diz Mészáros, é que o capital continua vivo, mas vivo à semelhança de um câncer. Portanto, com uma dinâmica metabólica altamente degradante e mortífera, o que torna a situação da humanidade particularmente grave na atualidade. Mas, por mais paradoxal que isso possa parecer, é essa a condição que de fato abre a possibilidade objetiva para a superação do complexo social alienante em que nos inserimos.

O autor de Para além do capital se baseia aqui em Marx, para quem "nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém" (apud Mészáros, 2002, 467). Para o filósofo húngaro, a presente crise estrutural é a confirmação desse pleno desenvolvimento das forças produtivas do capital, que, por haverem se transformado em forças eminentemente destrutivas, colocam em risco a viabilidade do sistema, ao mesmo tempo em que impõem para a humanidade um desafio que ela já não pode contornar: a elaboração de uma alternativa radical em relação ao atual estado de coisas ou a deterioração progressiva de sua substância enquanto seres autoconscientes e capazes de desenvolver positivamente suas vastas potencialidades. Numa palavra: socialismo ou barbárie - eis a fórmula que melhor resume o dilema.

É aqui que entra em cena o tema da ofensiva socialista, a estratégia revolucionária capaz de nos levar para além do capital enquanto modo de controle sócio-metabólico fetichista, alienante, perdulário e destrutivo, e não somente do capitalismo e seus respectivos instrumentos de garantia e segurança da propriedade privada.

A ofensiva socialista que Mészáros defende não dispensa as lutas que ocorrem no interior do parlamento e do Estado burgueses, mas as transcende ao centrar seus esforços na formação de novas mediações extra-parlamentares, não antagônicas e sustentáveis, de regulação da atividade produtiva. Ora, argumenta o filósofo, sendo o capital um sistema específico de mediações de segunda ordem, que, além de determinar as ações do Estado, age fundamentalmente fora dele – o capital é uma "força extra-parlamentar par excellence", diz Mészáros -, o que é necessário, justamente, é negar essa estrutura ali mesmo onde ela se enraiza, bem como afirmar um novo conjunto de mediações, organizadas de maneira horizontal e pluralista e controladas de forma consciente pelos produtores livres e associados.

Isso está de acordo com o ideal de crítica que o filósofo húngaro resgata de Marx, a saber: a articulação teórica e prática de negação e afirmação no sentido da construção da emancipação humana. Em termos político-institucionais, a negação consiste na atuação que acontece ainda no âmbito do Estado. Ela é, aí, pois, sinônimo de defensiva – por exemplo, lutar no interior do parlamento pela manutenção de direitos conquistados historicamente. A postura defensiva, diz Mészáros, é importante e não deve ser desprezada. Mas ela precisa ser complementada pela ação afirmativa, isto é, pela criação de mediações de regulação sócio-metabólica que estejam além do Estado.
A ofensiva socialista é, portanto, essa conjugação de atividade negativa e afirmativa, de práxis que se dá, também, no plano do Estado, mas que ocorre substancialmente fora dele, a fim de se transcender a divisão hierárquica do trabalho e a separação entre os trabalhadores e os meios de produção. Em ambas as frentes de batalha – intra e extra-parlamentar -, as ações necessitam se orientar pelo objetivo de distribuir o poder de decisão, sobre todos os âmbitos da atividade produtiva, aos "produtores livremente associados".

Fica claro, então, que, de acordo com Mészáros, o problema a ser atacado é o da separação entre política – a decisão consciente dos indivíduos sociais – e a esfera reprodutiva material da sociedade. E isso só pode ser feito se se supera a "política tradicional", visto que o que está em jogo é não apenas a mera ocupação do Estado – que não pode, por definição, se tornar instrumento de controle do capital -, mas a regulação da produção por parte dos sujeitos que a realizam. Fundir o processo de legislar – decidir, estabelecer conscientemente as regras, os processos, os meios etc. - ao de produzir – fazer, executar, realizar –, de uma maneira em que os próprios produtores se auto-determinem, tal deve ser o objetivo precípuo dos socialistas.

É por essa razão que a nossa práxis não pode se limitar ao campo do parlamento. Para que consigamos confrontar a ação extra-parlamentar do capital – aquela que, bem entendido, controla o metabolismo social humano e utiliza, para esse fim, o Estado –, é preciso que nos constituamos, também, como força extra-parlamentar. Percebe-se, assim, que o movimento de transformação revolucionária, que deve abarcar todos os aspectos constitutivos da inter-relação entre capital, trabalho e Estado consiste numa reestruturação completa e radical das mediações materiais herdadas.

Ora, é exatamente essa orientação ofensiva que falta aos partidos brasileiros de esquerda hoje ocupantes das altas posições do Estado. Aliás, será que podemos, ainda, denominá-los de esquerda? Como afirma um antigo ditado, "temos que chamar a pá de pá", principalmente quando está nas mãos dos nossos coveiros. A leitura atenta da obra de Mészáros nos indica que as medidas perpetradas por tais partidos – manutenção da política econômica de seus antecessores neoliberais, reformas de cunho privatizador, distribuição de sobras ("bolsas") para os pobres etc. -serviram bem para recuperar por alguns momentos o fôlego do sistema e amaciar os conflitos sociais, mas de forma alguma se constituíram em propostas para se ir além do capital.

Estarão a favor de que projeto de sociedade, afinal? As "palestras" e "consultorias" prestadas à iniciativa privada e o rápido enriquecimento de alguns dos seus membros de cúpula são pistas significativas para que possamos formular uma resposta a esse respeito.

Saberá a militância desses partidos, que ainda se considera socialista, perceber essas contradições e canalizar as suas valiosas energias combativas para projetos genuinamente emancipatórios? Oxalá que sim, sem esperar da parte do Estado mais do que ele pode nos dar e apontando suas armas para o lugar certo, como Davi, que não mirou alguma região marginal do corpo de Golias, mas a sua fronte. E de modo urgente, para que possamos, em meio a este tempo histórico de militarismo e de produção destrutiva, cortar o pavio antes que ele atinja a dinamite.

A extrema lucidez de István Mészáros, contida nas páginas de Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, nos ajuda a tomar consciência dessas verdades.


Ficha
Título: Para além do capital: rumo a uma teoria da transição
Autor: István Mészáros
Editora: Boitempo
Ano: 2002
Páginas: 1.104
Preço: R$ 102,00

Sobre o autor:
István Mészáros é um trabalhador braçal que se fez filósofo. Na juventude, trabalhou em fábricas de aviões, de tratores, têxteis, tipografias e até no departamento de manutenção de uma ferrovia elétrica. Aos dezoito anos, graças ao fato de haver se formado com notas máximas, ganhou uma bolsa de estudos na Universidade de Budapeste, onde conheceu o filósofo György Lukács, de quem foi grande amigo e discípulo. Militou em partido, exerceu um longo ativismo político desde então. Academicamente, trabalhou na Universidade de Turim, no Bedford College da Universidade de Londres, na Universidade de Saint Andrews, na Escócia, na Universidade de Sussex, em Brighton (Inglaterra), na Universidade Nacional Autônoma do México e na Universidade de York, em Toronto, no Canadá. Aposentou-se em 1995. Atualmente, vive na cidade de Rochester, próxima a Londres.

Demetrio Cherobini é bacharel em Ciências Sociais e mestre em Educação.

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