Israel Souza[1]
Grosso modo, pode-se definir a trajetória do desenvolvimento na América Latina da seguinte maneira: iniciado sob os governos populistas, robustecido e esgotado sob os governos militares. Nascido sob os impactos da Crise de 1929. Sepultado sob os impactos da crise dos anos 1970. Uma crise como parteira. Outra como coveira.
Ao fragilizar os Estados e as fronteiras nacionais, a crise da dívida e as políticas de “livre comércio” dos nos 1980-90 pareciam apenas dar ao desenvolvimento o golpe de misericórdia, sacrificando-o no altar da “globalização”. Aumentando, porém, as desigualdades sociais, as políticas neoliberais viraram ao avesso a sorte dos governos a elas associados. Uns caíram. Outros não se re-elegeram ou não elegeram seus sucessores.
Se nos anos 1990 assistimos à hegemonia neoliberal, nos anos 2000 vimos sua contestação. Governos vinculados à esquerda e a movimentos sociais diversos foram eleitos. Embora com certo exagero, não foi sem motivo que alguns analistas começaram a falar em um período “pós-neoliberal” para a América Latina. Além das esperanças focadas mais estritamente na questão social, alguns desses governos trouxeram também grandes expectativas em relação à questão ambiental, caso de Brasil, Bolívia e Equador.
O governo Lula criou o Programa Amazônia Sustentável, e muito se esforçou para que o Brasil fosse visto, lá fora, como referência no campo da preservação ambiental. A Convenção do Clima em Copenhague foi seu grande palco. Agora é Dilma quem bem quer aparecer na Rio+20 - Conferência das Nações Unidas em Desenvolvimento Sustentável marcada para 2012, no Rio de Janeiro. Sob Evo Morales e Rafael Correa, Bolívia e Equador reconheceram-se Estados plurinacionais e inscreveram em suas constituições o “Bem-viver”. De maneira um tanto simples, pode-se dizer que esse é um ideal societário que, calcado nas práticas-saberes dos povos originários, inspira a construção de uma sociedade em que sejam respeitados os direitos dos povos e da natureza.
Em que pesem as esperanças suscitadas pelos os governos acima referidos, eles acabaram por legitimar o sistema que eles mesmos ajudaram a deslegitimar. Ressuscitaram e reabilitaram o desenvolvimento, incorporando-o a seus programas. Reputaram-no imprescindível para a inclusão social e mesmo para o respeito aos povos à natureza. Dessa forma, o que parecia definitivamente enterrado ganhou novo sopro de vida. Em decorrência, os processos emancipatórios no continente deparam hoje com não poucos nem pequenos problemas.
No Brasil, eles podem ser vistos no caso das hidrelétricas cujo caráter genocida é amplamente denunciado. Ainda em dias próximos, o presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Curt Trennepohl, afirmou que há de autorizar a hidrelétrica de Belo Monte (no Pará), e que seu trabalho não é cuidar do meio ambiente e sim “minimizar impactos ambientais”. No mesmo tom intransigente, sugeriu que os afetados pela barragem deveriam receber tratamento igual ao que os “aborígenes” receberam na Austrália. Embora assombrosamente perversas, tais palavras não receberam retificação de nenhum de seus superiores. O silêncio parece dizer que ou não veem nelas nenhum problema ou então a endossam.
Na Bolívia, os conflitos em torno da rodovia que ligará Cochabamba a Santa Cruz mostram que lá as coisas não se passam de modo muito diverso. A rodovia terá 306 km. Um de seus trechos está projetado para atravessar o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), uma reserva de 1,091 milhão de hectares onde vivem entre 10 mil e 12 mil nativos. O valor estimado da construção é de US$ 415 milhões. Destes, US$ 322 milhões seriam do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), através do qual o governo brasileiro procura submeter financeiramente alguns de seus vizinhos, favorecendo, por meio de dinheiro público, um punhado de empresas sediadas no Brasil.
Os habitantes da região a ser afetada pela estrada alertam para problemas ambientais, temem a possível chegada de plantadores de coca, de colonizadores em busca de madeira e de outros bens naturais. A eles, que reclamam ainda da falta de consulta, Evo Morales chamou "inimigos da pátria", “agentes a serviço da USAID” (Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional). Para o presidente que já foi considerado “Herói Mundial da Mãe Terra”, a estrada sai, “queiram ou não”.
De seu lado, Rafael Correa tem dispensado tratamento similar àqueles que em seu país são contrários a projetos de impactos sociais e ambientais sabidamente danosos. Por esses dias, o governo decidiu convocar licitação para exploração petroleira do “Campo Armadillo”, situado na província amazônica de Orellana e onde foram encontrados vestígios dos povos isolados Tagaeri e Taromenane. Com isso, o presidente não apenas contradiz sua política de proteção aos povos isolados, mas pode ser responsável pelo genocídio de tais povos. Aos que a isso se opõem ele chamou “terroristas”, termo amplamente invocado para justificar a implantação de um “estado de exceção permanente” e a violação dos direitos humanos.
Ter inscrito o ideal do “Bem-viver” em suas constituições foi inegável ato de força e coragem por parte dos governantes do Equador e da Bolívia e daqueles que lhes deram sustentação. Todavia, isso está longe de, por si só, assegurar respeito à natureza e aos povos. Agregado e/ou subordinado ao desenvolvimento, tal ideal tem sido usado para legitimar projetos outros e para desqualificar e criminalizar e até para desumanizar os insubmissos.
Liderando o processo de integração continental através do BNDES e do projeto da Iniciativa para a Integração das Infra-estruturas Regionais Sul-Americana (IIRSA), o governo brasileiro exporta para seus vizinhos as misérias que ele tem semeado também em solo pátrio. Vê-se por esse prisma que, mesmo nas mãos de governantes saídos das fileiras da esquerda, o desenvolvimento tem servido para mover guerra aos de “baixo” e à natureza.
Ante tal quadro, seria oportuno perguntar: Seria esse o tipo de integração que os governos da região pretendem aprofundar para se proteger dos efeitos da atual crise? Os resistentes conseguirão vergar seus governos, fazê-los flexibilizar ou suspender as políticas genocidas? Ao “Bem-viver” estará reservada sorte idêntica à do “desenvolvimento sustentável”, isto é, a de se converter em ideologia do sistema ou num projeto só válido para micro-experiências incapazes de mudar seu entorno e se sustentar para além do curto prazo? Será esse outro capítulo histórico a compungir os que ainda acreditamos no socialismo?
Sobram-nos as dúvidas. Soçobram-nos as certezas. Entre estas poucas está a de que, apesar dos pesares, o desenvolvimento persiste na América Latina como uma ilusão a um só tempo fascinante e facínora...
[1] Cientista Social e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
Um comentário:
Concordo com seu posicionamento, mas não sei como pensar no sentido de que alguns países latinos, como Equador e Peru tem demonstrado algumas atitudes contrárias: No Equador, A Pacha Mama passou a ser sujeito de direito e no Peru a nova lei prevê que os povos indígenas sejam consultados antes dos investimentos publicos e privados que venham a afetar seu território ou sua cultura. O que vc acha?
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