segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A maldição da violência. O extrativismo posto a nu. Artigo de Alberto Acosta


“A violência e a repressão, para além de algumas etapas de maior intensidade em alguns momentos históricos, estão latentes em uma modalidade de acumulação que agride sistemática e massivamente a Natureza e inclusive a sociedade”, escreve Alberto Acosta, em artigo publicado no Semanario Virtual Caja de Herramientas, edição n. 275, semana de 07 a 13 de outubro de 2011. A tradução é do Cepat.
Alberto Acosta é economista equatoriano, professor e pesquisador da Flacso. Foi ministro de Minas e Energia e presidente da Assembleia Constituinte e deputado constituinte.
Eis o artigo.
“Toda a história do petróleo está repleta de criminalidade, corrupção,
do exercício cru do poder e do pior do capitalismo de fronteira” (Michael J. Watts (1999). (1)
Fica difícil entender como um Governo popular, que se preza como revolucionário e que assume a defesa dos interesses populares, pode reprimir violentamente setores populares que reclamam seus direitos. Isso acontece na Bolívia. O Governo do presidente Evo Morales, fazendo caso omisso dos reiterados pedidos para que abra o diálogo com os moradores do Território e Parque Nacional Isibore Sécure (TIPNIS), optou pela repressão. Usando de uma inusitada violência policial tratou-se de dissolver uma marcha de povos indígenas, que defendem seus direitos e a Constituição de seu país. Com sua ação pacífica, estes grupos se opõem à construção de uma estrada, financiada por capital brasileiro, que atravessaria o TIPNIS para facilitar a exploração de jazidas de petróleo. E, de passagem, eles colocam em evidência as contradições de seu Governo.
A indignação e a frustração se expandem quais círculos concêntricos pela Bolívia e o mundo. Adolfo Chávez, dirigente indígena boliviano, não podia expressar de melhor maneira o mal-estar: “Os povos indígenas de todo o país nos encontramos indignados e profundamente afligidos pela ação do Governo. Este governo nos prometeu uma mudança: respeitar os direitos indígenas, respeitar a Mãe Terra, respeitar a nossa cultura e respeitar a nossa autodeterminação”.
Seguramente, serão muitas as (des)razões oficiais para explicar este ato violento que nos confronta com uma realidade pouco conhecida. A violência e a repressão, para além de algumas etapas de maior intensidade em alguns momentos históricos, estão latentes em uma modalidade de acumulação que agride sistemática e massivamente a Natureza e inclusive a sociedade. O que acaba de acontecer na Bolívia, com o agravante de que um governo que se proclama representante dos indígenas reprima indígenas, aconteceu ou acontece ainda em quase todos os países ricos em recursos naturais.
Embora seja pouco credível à primeira vista, a evidência recente e muitas experiências acumuladas permitem afirmar que a pobreza em muitos países do mundo está relacionada à existência de uma significativa riqueza em recursos naturais. De modo especial, parecem estar condenados ao subdesenvolvimento e a sofrer diversas formas de autoritarismo aqueles países que dispõem de uma substancial dotação de um ou poucos produtos primários. Uma situação que é ainda mais complexa para aquelas economias que são dependentes em termos de financiamento fundamentalmente do petróleo e de minerais. Estes países estariam presos à lógica perversa da maldição da abundância.(2) Será que são países pobres por que são ricos em recursos naturais?
Violência e autoritarismo do extrativismo
A violência parece configurar um elemento consubstancial do extrativismo, um modelo bio-depredador por excelência. Há violência produzida pelo Estado a favor dos interesses das empresas extrativistas, sobretudo transnacionais. Violência camuflada como ações de sacrifício indispensável de alguns poucos para garantir o bem-estar da coletividade, independentemente da orientação ideológica dos governos. Basta ver a repressão em Yukumo, Bolívia, por defender o TIPNIS ou aquela provocada pelo governo de Alan García no norte da Amazônia peruana, em junho de 2009 ou ainda aquela de Dayuma, na região amazônica equatoriana, no final de 2007. (3)
Há inclusive uma violência simbólica infiltrada em sociedades que assumiram o extrativismo, como algo praticamente inevitável: poder-se-ia dizer que nestas sociedades existe uma espécie de DNA extrativista em todos os níveis, começando pelos níveis mais altos de definição política. Isso explica porque os governantes progressistas, ao assumirem o papel de portadores da vontade coletiva, tratam de acelerar o salto para a tão desejada modernidade forçando o extrativismo: uma espécie de modernização passadista...
Estas atividades extrativistas produzem, colateralmente, graves tensões sociais nas regiões onde se realiza a exploração de tais recursos naturais. Os impactos econômicos e sociais provocam a divisão das comunidades, brigas entre elas e dentro das famílias, a violência intrafamiliar, a violação de direitos comunitários e humanos, o aumento da delinquência e da insegurança, o tráfico de terras, etc. As grandes tensões sociais nas regiões crescem através de outras formas perversas de dominação que se produzem quando, por exemplo, se formam empresas extrativistas das quais participam grupos indígenas para explorar estes recursos naturais não renováveis em zonas conflitivas, como acontece agora no Bloco Armadillo, no Equador, onde – constitucionalmente – está proibido extrair petróleo por haver evidências da presença de povos em isolamento voluntário. Este tipo de situação aumenta a confusão dos povos e gera mais rupturas internas.
A violência aflora também quando os governos, considerados progressistas, como no caso do Equador, criminalizam as manifestações populares que emergem contra as atividades extrativistas, com a única finalidade de garanti-las... para poder reduzir a pobreza, como justifica a mensagem oficial.
Em suma, como reverso da medalha das violências múltiplas, a lista de repressões ligadas ao extrativismo é longa. Este poderia ser uma das telas de fundo da história de nossos povos, que se iniciou há mais de 500 anos, quando se inaugurou esta modalidade de acumulação extrativista que nos condenou ao subdesenvolvimento.
Também não faltaram as guerras civis, até guerras abertas entre países ou agressão imperial, por parte algumas potências empenhadas em assegurar, pela força, os recursos naturais, sobretudo hidrocarbonetos nos últimos tempos. Para ilustrar este último caso basta mencionar a agressão militar norte-americana ao Iraque e ao Afeganistão, em ambos os países buscando o controle das reservas petrolíferas e de gás. Os bombardeios da OTAN sobre a Líbia parece que também vão nessa direção.
Esta violência quase inata a esta maldição da abundância está vinculada, muitas vezes, a regimes autoritários. A massiva exploração dos recursos naturais não renováveis, essencialmente depredadora, é possível atropelando centenas de segmentos da população em benefício da coletividade e para alcançar o desenvolvimento, no dizer dos governantes.
Os polpudos ingressos obtidos permitiram o surgimento de Estados paternalistas e autoritários, cuja capacidade de incidência está ligada à capacidade política de administrar uma maior ou menor participação da renda mineira ou petrolífera, assim como a sua capacidade de impor novos projetos extrativistas supostamente indispensáveis para encarar a pobreza e desenvolver a economia; projetos que, em conformidade com a propaganda oficial, até serviriam para proteger o ambiente...
Este tipo de exercício político se explica também pelo afã dos governos de se manterem no poder, acumulando cada vez mais, e/ou por sua intenção de acelerar uma série de reformas estruturais que, a partir de sua perspectiva particular, assomam como indispensáveis para transformar as sociedades. São Estados que ao monopólio da riqueza natural acrescentaram o monopólio da violência repressiva e política.
Nestas economias extrativistas se configurou uma estrutura e uma dinâmica política não apenas violenta e autoritária, mas também voraz. Esta voracidade, particularmente nos anos de bonança, se plasma em um aumento muitas vezes mais que proporcional do gasto público e sobretudo em uma particular distribuição dos recursos fiscais.
Diante da ausência de um grande acordo nacional para administrar estes recursos naturais, sem instituições democráticas sólidas (que só podem ser construídas com uma ampla e permanente participação cidadã), aparecem em cena os diversos grupos de poder, desesperados para obter uma fatia da renda mineral ou petroleira. E, como é fácil compreender, esta rivalidade distributiva, que pode ser mais ou menos conflitiva, provoca novas tensões políticas.
Tudo isso contribuiu para debilitar a governabilidade democrática enquanto acaba por estabelecer ou facilitar a permanência de governos autoritários e de empresas vorazes, proclives também a práticas autoritárias. Com efeito, nestes países não assomam os melhores exemplos de democracia e a ausência de políticas previsíveis acaba por debilitar a institucionalidade existente ou impede sua construção.
Os elevados ingressos do Governo lhe permitem prevenir a configuração de grupos e frações de poder contestatórias ou independentes, que estariam em condições de demandar direitos políticos e outros (Direitos Humanos, Direitos da Natureza, justiça, cogoverno, equidade, etc.), e de deslocá-los democraticamente do poder. O Governo pode destinar fabulosas somas de dinheiro para reforçar seus controles internos; incluindo a repressão dos opositores. A América Latina tem uma ampla experiência acumulada neste campo.
Como consequência dos elevados ingressos derivados da exploração dos recursos naturais e das abertas possibilidades de financiamento externo, os governos tendem a relaxar suas estruturas e práticas tributárias. Neste ponto, então, assoma novamente o efeito voracidade, manifestado pelo desejo de participar do festim dos fabulosos ingressos por parte da banca, sobretudo internacional, seja privada ou multilateral, corresponsável pelos processos de endividamento externo. Ultimamente, a China concede cada vez mais créditos a vários países subdesenvolvidos, particularmente da África e da América Latina, com o fim de assegurar para si jazidas minerais e petroleiras, ou amplas extensões de terra para a produção agrícola, além da construção de importantes obras de infra-estrutura.
Em definitiva, os significativos impactos ambientais e sociais próprios destas atividades extrativistas em grande escala, distribuídos de forma desigual, aumentam a ingovernabilidade, o que por sua vez exige novas respostas autoritárias.
Este é um grande paradoxo: há países que são muito ricos em recursos naturais, que inclusive podem ter importantes ingressos financeiros, mas que não conseguiram estabelecer as bases para o seu desenvolvimento e seguem sendo pobres. E são pobres porque são ricos em recursos naturais, enquanto apostaram prioritariamente na extração dessa riqueza natural para o mercado mundial, marginalizando outras formas de criação de valor sustentadas mais no esforço humano do que na generosidade da Natureza.
Do extrativismo colonial ao extrativismo do século XXI
Há muito poucos anos foi inaugurada uma nova etapa cheia de esperanças de mudanças em vários países da América Latina. As políticas econômicas dos governos progressistas, não mais em sintonia com os mandatos do FMI e do Banco Mundial, começaram a reverter paulatinamente a tendência neoliberal anterior. Contudo, este empenho de transformação, como vemos na prática e por mais que se conheçam até à saciedade as nocivas consequências provocadas pelas lógicas primário-exportadoras, não atinge (ainda) a essência extrativista da modalidade de acumulação que impera desde os tempos coloniais. Os países que se alinham com o progressismo e que defenderam posições antiimperialistas, na prática, ao manterem modelos que os atam aos interesses econômicos dos países centrais, não conseguem sua independência e mantêm os níveis de dependência política e econômica.
Contudo, estabeleçamos algumas diferenças. Há avanços com relação ao extrativismo anterior, sobretudo pelo lado da defesa do interesse nacional e de uma consequente ação estatal para tratar de reduzir a pobreza. Entre os pontos destacáveis, sem negar a existência de algumas graves situações contraditórias, aflora uma maior presença e um papel mais ativo do Estado. Aumentaram as regulações e normas estatais. Fortaleceram-se as empresas estatais extrativistas. E, a partir de uma postura nacionalista, através de alguns ajustes tributários, busca-se abocanhar uma parcela maior da renda petrolífera ou mineral.
Parte significativa desses recursos, ao contrário do que acontecia em anos anteriores, nos quais o grosso desta renda se destinava ao pagamento da dívida externa, financia importantes e massivos programas sociais. Desta maneira, estes Estados tratam de enfrentar ativa e diretamente a pobreza.
Sendo importante um maior controle por parte do Estado destas atividades extrativistas e inclusive sendo significativo este esforço para reduzir a pobreza, isto não muda a modalidade de acumulação primário-exportadora. A subordinação à lógica global de acumulação do capital se mantém inalterada. O real controle das exportações nacionais continua nas mãos do capital transnacional, que direta ou indiretamente determina a evolução destas atividades. Certamente, na América Latina joga um papel preponderante o peso do Brasil e seus interesses, através de suas diversas empresas com vocação global.
Perversamente, muitas empresas estatais destas economias extrativistas (com a anuência dos respectivos governos, certamente) parecem estar programadas para reagir exclusivamente aos impulsos externos e atuam casa adentro com lógicas semelhantes ou ainda piores que aquelas empregadas pelas empresas transnacionais. Desta maneira, fica demonstrado que a questão da propriedade dos recursos naturais e das empresas extrativistas, mesmo sendo importante, não é suficiente.
Igualmente contraditório é o fato de que estes governos, condicionados pelos interesses geopolíticos transnacionais, pelas velhas e novas hegemonias como a China e o Brasil, continuem desenvolvendo projetos de integração ao mercado mundial impulsionados pelas forças de dominação do sistema-mundo capitalista; como são aqueles projetados pela Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). O eixo Manta-Manaus, entre o Equador e o Brasil, é uma amostra desta afirmação.
Graças ao petróleo ou à mineração, ou seja, aos ingressos produzidos pelas exportações destes recursos, os governantes progressistas conseguem se consolidar no poder e desenvolver renovadas ações estatais para enfrentar a pobreza. Não esperam, como em épocas neoliberais, que a pobreza se reduza algum dia por efeito do crescimento econômico, que, por sua vez, provocaria uma maior concentração do ingresso; situação que depois beneficiaria a coletividade através de novos investimentos que provocariam novos empregos e rendas adicionais. Os governos progressistas, que entenderam que essa teoria neoliberal não funciona, de maneira consciente, inspirados em critérios de justiça social, estão empenhados em reduzir as desigualdades na sociedade.
O que foi exposto acima acontece com os atuais governos progressistas da região. Do Estado mínimo do neoliberalismo, se procura – com justificada razão – reconstruir e ampliar a presença e ação do Estado para liderar o processo de desenvolvimento, e não deixá-lo ao destino preso às forças do mercado. Lamentavelmente, com todo este esforço estatal não se consegue (ou não se quer) alterar as bases estruturais da modalidade de acumulação extrativista.
Sendo assim, a produção e as exportações de matérias-primas mantêm inalteradas suas estruturas e traços fundamentais. A depredação ambiental e o desrespeito social estão na ordem do dia.
O que é notável e certamente lamentável é que, embora se tenha conseguido reduzir a pobreza nos países com governos progressistas, as diferenças e desigualdades na distribuição da riqueza se mantêm inalteradas. Os segmentos empresariais poderosos, que sofreram o embate dos “discursos revolucionários” da parte dos governantes progressistas, não deixaram de obter volumosos lucros aproveitando-se deste renovado extrativismo e desenvolvimentismo (ao menos é o que acontece no Equador).
Em consequência, a relativa melhoria nas condições de vida das camadas tradicionalmente marginalizadas da população foi possível graças à melhor distribuição dos crescentes ingressos petrolíferos e minerais, não em consequência de uma profunda redistribuição da riqueza. Esta situação é explicável pela relativa facilidade de obter vantagem da generosa Natureza, sem entrar em complexos processos políticos de redistribuição desta riqueza.
Como em épocas passadas, o grosso dos benefícios desta orientação econômica vai para as economias ricas, importadoras de Natureza, que tiram proveito maior processando-a e comercializando-a em forma de produtos acabados. Enquanto isso, os países exportadores de bens primários, que recebem uma participação mínima da renda mineral ou petroleira, são os que arcam com o peso dos passivos ambientais e sociais. Passivos que ocultam, muitas vezes, processos extremamente violentos ligados à lógica extrativista, que implica uma massiva e sistemática agressão à Mãe Terra e inclusive às comunidades.
Em síntese, a lógica subordinada de sua produção, motivada pela demanda externa, caracteriza a evolução destas economias primário-exportadoras. O neo-extrativismo, como sobremesa, mantém e reproduz elementos centrais do extrativismo de corte colonial, causa primigênia do subdesenvolvimento.
Superar estas aberrações coloniais e neocoloniais é o desafio que estes países têm. Construir o Bem Viver constitui um passo qualitativo para dissolver o tradicional conceito de progresso em sua deriva produtivista e de desenvolvimento econômico, assim como seus múltiplos sinônimos. Mas não apenas os dissolve; o Bem Viver propõe uma visão diferente, muito mais rica em conteúdos e, certamente, mais complexa. Para consegui-lo, é indispensável sair da armadilha do extrativismo.
Notas:
1. WATTS, Michael J. “Petro-violence-somethoughsonscomunity, extraction, and politicalecology”, WorkingPapers, Institute of International Studies,University of California, Berkeley, 1999. Aqui se estuda o caso da violência petroleira na Nigéria e no Equador.
2. ACOSTA, Alberto. La maldición de La abundancia, CEP, Swissaid y Abaya-Yala, 2009. Disponível no sítio: http://www.extractivismo.com/documentos/AcostaMmaldicionAbundancia09.pdf Sobre este assunto se pode encontrar no mesmo portal valiosas contribuições de Eduardo Gudynas, Jürgen Schuldt, Humphreys Bebbington e A. J. Bebbington, Mariastella Svampa, entre outras pessoas.
3. É preciso lembrar que a Assembleia Constituinte, no ano seguinte, outorgou a anistia às pessoas vítimas desta repressão.

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