Por Eduardo Carneiro, contribuição ao projeto Dossiê Acre
“O capital ao surgir escorre-lhe sangue e lodo por todos os poros, da cabeça aos pés” (MARX, 1968, p. 879, grifo nosso).
“Um espectro ronda a Europa”, essa é a frase inaugural do Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, pelos economistas Karl Marx e Friedrich Engels. O espectro a que se referiam era o comunismo. Segundo diziam, “todas as grandes potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo” (MARX; ENGELS, 1989, p. 29).
Um “espectro” com maior potencial de assombro se “manifestou” na Amazônia Ocidental em fins do século XIX, e não houve quem exorcizá-lo. Pelo contrário, muito mais foram aqueles que se uniram para adorá-lo, para tornarem-se procuradores dele na região. Uniram-se ao “monstro” ao ponto de se confundirem com ele. O capitalismo penetrou na Amazônia e por onde passou esse “espectro”, em seu perfil “imperialista”, gerou “horrores econômicos” (FORRESTER, 1997), “políticos” (GENEREUX, 2000) e “sociais”.
O “capital” não se instala e nem consegue sobreviver sem “desgraças”. Essa afirmação de Perrault (1999) pode ser facilmente comprovada através da observação da própria história do capitalismo. Infelizmente, o processo de ocupação do Aquiry por brasileiros e a consequente anexação dele ao Brasil fazem parte desse “flagelo”. E, por mais que a História Oficial aponte para um lado imaginariamente “belo”, “heróico” e “patriótico” da genealogia do Acre e dos acreanos, a História Econômica a partir das evidências indica o lado oposto, o do “horror” como marca da formação econômico-social do Acre.
Será preciso estar com “espírito aberto” para uma nova interpretação dos fatos históricos que marcam o “abrasileiramento” das terras que até então eram ocupadas centenariamente por povos indígenas. A imagem “positiva” da origem do Acre legitima o capitalismo na região e dissimula os seus nefastos desdobramentos econômicos, políticos e sociais, do ingresso do capital internacional.
A narrativa épica é anualmente divulgada pelo Governo do Estado por intermédio do Departamento de Patrimônio Histórico e da Secretaria de Comunicação por ocasião da passagem do aniversário dos principais acontecimentos da dita Revolução Acreana. Geralmente os fatos são contados sem nenhuma discussão. E durante o Centenário da Revolução Acreana (1999-2003), aconteceu pior, pois todos os acontecimentos históricos foram elogiados ao ponto da quase apoteose.
Nas escolas, não há dúvidas quanto à opção da Secretaria de Educação (SEE/Ac) pelo ensino “elogioso” da história do processo de ocupação e anexação do Acre ao Brasil. A criança é ensinada desde cedo a ter orgulho da comunidade a que pertence, a reconhecer os heróis do passado e do presente e render-lhes homenagens. Enfim, a ter propensão ao civismo e ao respeito às autoridades.
Mas se analisado serialmente os fatos que fazem parte do processo de anexação das terras que hoje conhecemos como Acre ao Brasil, as conclusões são outras. E o ponto-chave para “esclarecer” a questão é relacionar todo processo migratório e toda a demanda pela atividade econômica seringueira com os interesses advindos do capital internacional, que na época patrocinou praticamente toda migração.
Vivia-se o período do chamado “imperialismo”, em que as grandes potências mundiais se expandiam, ampliando a cadeia mercantil mundial e formando aquilo que o sociólogo estadunidense Wallerstein (1999) chamou de “Economia-Mundo Capitalista”. É bom lembrar que capital nada mais é do que um processo de ampliação de valor por meio do investimento em negócios lucrativos. E quando o mercado nacional já se encontra saturado, os investimentos passam a ser feitos em “novos mercados” que garantam maiores taxas de retorno.
La region de la goma foi uma dessas oportunidades comerciais vantajosas em fins do século XIX por conta da demanda que a indústria automobilística tinha por borracha. Em ela sendo incluída na cadeia mercantil da Economia-Mundo Capitalista, teve início a história do Acre enquanto terra habitável por homem branco, maioria de nacionalidade brasileira. A migração de nordestinos para a região, a dita Revolução Acreana e a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903); em fim, o abrasileiramento daquelas terras, está relacionado com o “espectro” que se instalou na região e que lhe transmitiu valor econômico.
Ao nomearem de “Acre” a região onde extraiam látex por demanda internacional, os brasileiros praticavam uma “violência simbólica” sem tamanho, pois se apoderavam da região primeiramente no imaginário, considerando-a “terra de ninguém”. Não levaram em conta o vínculo e o sentimento de pertencimento que vários nativos tinham com a terra. Nem os Tratados Internacionais que demarcavam o território como não-brasileiro.
Argumenta-se aqui que o Acre só é Acre por conta, em primeiro lugar, do capital internacional na região em fins do século XIX; e, em segundo lugar, por conta da ambição dos “heróis” que seduzidos por esse capital foram capazes das mais diversas atrocidades. Do genocídio de inúmeras tribos indígenas ao conflito armado internacional. Mas não é de se estranhar, pois na história econômica do homem a violência é parte integrante. Os fins dos mais fortes sempre tendem a justificar os meios utilizados sobre os mais fracos.
O respeito e a observância dos princípios morais e éticos são sempre secundários quando objetivo é “se dar bem”. Para garantir seus interesses o homem é capaz de matar, escravizar, servilizar, assalariar, roubar, guerrear, infringir leis, praticar corrupção, invadir terra alheia e criar teorias “científicas” que justifiquem tudo isso. Não há preocupação com o próximo, pois “a guerra é quase tão antiga quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano” (KEEGAN, 1996).
Ninguém que se dedique à meditação sobre a história e a política, consegue se manter ignorante do enorme papel que a violência sempre desempenhou nas atividades humanas, e à primeira vista é bastante surpreendente que a violência tão raramente tenha sido objeto de consideração. (ARENDT, 1994, p. 7, grifo nosso).
Mais o pior de tudo foi o fato de “os heróis” terem trazido consigo, conscientemente ou não, o “espectro” do capitalismo para a região, e com ele todas as “maldições” que sempre o acompanham, desde os danos ambientais até a exclusão social. Afirmamos ser “pior” por que as consequências desse feito tem se desdobrado até hoje. Eles desbravaram o “Aquiry” indígena e as “Tierras Non Descobiertas” bolivianas para servirem de rota ao Capital Internacional. Mas isso é um fato silenciado pela historiografia oficial, pois identificar os “heróis da primeira geração de acreanos” como os responsáveis pela instalação das relações socioeconômicas de produção capitalista no Acre é fazê-los protagonistas do “império do mau” (PERRAULT, 1999, p. 12).
Em síntese, a “genealogia” do Acre nada tem a ver com a narrativa épica da historiografia oficial repleta de “heroísmo” e “patriotismo” dos nordestinos. Mais parece uma elegia, pois, como afirma a epígrafe desse texto, o capital ao se instalar, no caso nas barrancas dos rios Juruá e Purus, produz logo “sangue” e “lodo”. O primeiro, representando o genocídio dos nativos e os assassinatos de bolivianos e brasileiros; o segundo, uma das mais opressoras e corruptas sociedades da história do Brasil – a sociedade gomífera baseada no “sistema de aviamento” e no “coronelismo” em que a “lei do cano da espingarda” era que prevalecia.
E foi justamente o maior poder de matar a que os migrantes brasileiros dispunham frente aos bolivianos e indígenas que garantiu o sucesso da posse daquelas terras e forçou todo o processo de legalização internacional do abrasileiramento definitivo delas. “Se a essência do poder é a efetividade do domínio, não existe então nenhum poder maior do que aquele que provem do cano de uma arma” (ARENDT, 1994, p. 23, grifo nosso). As terras ficaram com quem tinham maior poder de violência, isso é fato. E onde há riqueza há abuso de poder. “A guerra está indiscutivelmente ligada à economia”, já dizia Keegan (1996, p. 16).
Não adianta a historiografia continuar tentando heroificar a dita Revolução Acreana. Não há motivos para aplaudir conflitos armados impulsionados por interesses econômicos de oligarquias locais. A narrativa da dita Revolução Acreana como fenômeno inaugural do Acre não tende ao paraíso, pois “[...] os fatos da guerra não são frios. Eles queimam com o calor do fogo do inferno” (idem, p. 22).
Ela é a expressão “nua e crua” do corrosivo egoísmo humano marcado pela violência coletiva premeditada. Não há herói acreano querendo arriscar a vida por amor ao Brasil, e sim o homo economicus defendendo seus ganhos advindos da economia gomífera. Havia muito a ser dito sobre o assunto, mas o espaço concedido aqui não nos permite.
Para finalizar, é bom que se diga que a historiografia oficial sobre a anexação do Acre ao Brasil está marcada por uma narrativa produzida em função dos interesses dos “coronéis de barranco” e dos políticos e comerciantes de Manaus e Belém que, na época, tinham muito a perder com a “bolivianização” da região. A elite da nascente sociedade acreana se deu ao trabalho de reproduzir a narrativa epopeica, pois várias foram as consequências do processo de reprodução de capital internacional na última fronteira amazônica brasileira que se buscava silenciar.
Mas, se ao olhar para trás o brasileiro e, o acreano em particular, enxergar na genealogia do Acre “sangue” e “lodo” em vez de “heroísmo” e “patriotismo”, o objetivo do artigo terá sido atingido. Pois o “sangue” e “lodo” subsistem até hoje. Viva o Acre Sustentável!!!!!
Eduardo de Araújo Carneiro é professor de História Econômica da UFAC.
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, H. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
GENEREUX, Jacques. O Horror Político: o horror não é Econômico. Rio de janeiro: Berrand Brasil, 1998.
KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MARX, Karl. O Capital. Livro 1, Vol. 2. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968.
MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Anita Garibaldi, 1989.
PERRAULT, Gilles. O Livro Negro do Capitalismo. São Paulo: Editora Record, 1999.
WALLERSTEIN, Immanuel. Análise dos Sistemas Mundiais. In: GIDDENS, Anthony. Teoria Social Hoje. São Paulo: Unesp, 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário