terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Saúde, serviço público e ética no Acre: o problema não é exatamente

João Maciel

            Na última semana foi veiculado pela imprensa acriana um conflito que segundo consta, iniciou-se com uma declaração da Secretária de Saúde do Estado em um programa de televisão, onde afirma que muitos médicos são motivados unicamente pela vontade de riqueza. Como se sabe, o clima de indisposição da referida secretária com a comunidade médica acriana não é de hoje. No carnaval de 2011, houve um episódio que rendeu ofensas e acusações mútuas, quando, se não me engano, a secretária autorizou que fossem cortados o ponto dos médicos que faltaram aos plantões nas unidades de saúde pública durante aquele período.
            Eu, que não sou médico, felizmente muito raramente ocupo médicos, mas ouço cotidianamente reclamações de pessoas sobre o atendimento dos médicos, repito, reclamações sobre o atendimento dos médicos e não somente sobre o sistema de saúde pública em si, não sei exatamente em que contexto esta Sra. expressou essa opinião, mas acho que ela não falou tão grande absurdo.
            Infelizmente, alguns grupos da sociedade brasileira, disfarçando sua ganância atrás de títulos universitários, só invocam a democracia e o espírito republicano quando sentem que seus interesses econômicos e sua imaculada posição social estão em questão. Mas é claro, tais grupos não se resumem aos médicos e suas instituições que repudiaram as declarações da secretária.
            Em matéria de serviços públicos, o comportamento coorporativo, essência do patrimonialismo característico da sociedade e instituições brasileiras se opõe ao interesse geral, estabelecendo um infecundo e desequilibrado diálogo para a solução dos problemas, e enquanto gestores, acadêmicos e intelectuais travam acirrado e erudito debate, como dizia meu avô, “o pobre paga o pato”.
            Formulemos nossas opiniões sobre o médico, o juramento profissional, a conduta ética e a inclinação a ser mercenário, que estão no centro da discussão suscitada, considerando o caso dos municípios do interior da Amazônia e a escassez desses profissionais. É certo que a saída não seria a que muitos municípios insistem, a saber, oferecer altíssimos salários para os titulados nessa área que sistematicamente demonstram não estarem dispostos a se afastar dos centros urbanos onde estudaram. Querem continuar se qualificando, perto das praias do litoral, dos shoping centers, das modernas boates, das colunas sociais... e para zelo da democracia felizmente isto não é crime! Acredito que a solução para esta escassez passa pela criação de condições para que os médicos dos municípios do interior sejam as pessoas do próprio interior e admitamos, um bom programa de bolsas de estudos e outros apoios à ociosa juventude local não sairia tão caro aos cofres públicos, se compararmos, por exemplo, com gastos em publicidade autopromotora dos governos. Enfim, a classe política e os tecnocratas deveriam rever o que acham ser a solução para o problema.
            Continuando o raciocínio, por outro lado, seria ridículo para qualquer cidadão brasileiro medianamente esclarecido e que teve contato com clínicas particulares, negar que o dinheiro não impulsiona determinantemente na conduta de muitos médicos. Não que toda profissão não seja impulsionada pela necessidade ou vontade de ganhar dinheiro. Mas estou falando daquele sistema comum às clínicas particulares e que funciona com uma eficácia impressionante na seguinte ordem: uma consulta (R$); uma série de exames automatizados (R$); prescrição de outros profissionais (R$), ou remédios (R$), ou procedimentos cirúrgicos (R$) ou tudo isso de uma só vez (R$). Inúmeras pessoas relatam que tem testemunhado diferenças radicais no comportamento de um mesmo médico segundo o local onde está atendendo: no espaço público a atenção ao paciente é hostil, na clínica particular a atenção ao cliente é dócil. Há ainda suspeitas e especulações diversas que dizem respeito a supostas vantagens materiais obtidas por alguns médicos que teriam ligações com indústrias farmacêuticas. No Brasil esta matéria é discutida e normatizada no âmbito do Conselho Federal de Medicina e suas Resoluções.
            Mas em nome da coerência, fica claro que este problema não se resolverá com um cabo de guerra entre secretária de Estado e médicos trocando ofensas e acusações, enquanto, como já disse, o pobre paga o pato. Reformular os estatutos profissionais e principalmente sua conduta e posicionamento ético é algo que somente os médicos podem fazer. No entanto, desses gestores, que atendendo às reclamações de uma população que me parece muitas vezes ter mais de hipocondria do que outra coisa (sem negar as epidemias de dengue, a malária, “rotavirus”), se elegem tendo como maior bandeira melhorar a saúde da população e na sua prática limita-se a querer “aparelhar ou humanizar” o sistema público, sinceramente, também não se pode esperar muita coisa.
            O gestor que se diz comprometido com a “saúde de primeiro mundo” deveria reconhecer em sua prática, ou melhor nas políticas de seu governo, que muitos problemas que hoje dizem ser papel da saúde pública resolver, na realidade está mais para a educação e a habitação digna: saber se alimentar, praticar exercícios físicos, ter saneamento e moradia, e por aí vai. Evidentemente, pra quem não tem emprego ou ganha suficientemente bem, não há opção ao se alimentar ou onde e como morar, enfim, o “buraco é mais embaixo” e um gestor que esteja no cumprimento de sua função não deveria se resumir a fazer do embate em questão mais um subterfúgio populista de disfarce da realidade, jogando a “culpa” na comunidade médica ou até que “role a cabeça” de sua escudeira.
            Esse debate somente traz à tona o que todos os governos, liderados por médicos ou não, deveriam admitir: a pior doença é aquela que acomete gravemente a estrutura social em sociedades acentuadamente desiguais como esta. Sociedades onde os frutos da produção, com a complacência de todos, escoam como sendo naturalmente inevitável para as mão de poucas pessoas, os donos de tudo: da terra, seu recursos e dos destinos de outras pessoas. Aqueles a quem as instituições devem servir na realidade não são todos.
            Desigualdade manifestada em Rio Branco, domingo, num movimentado espaço público, por volta de 18:40h, dois garotos negros, provavelmente pobres, mobilizam o efetivo de cinco agentes da polícia militar por estarem pulando da ponte metálica: eles são caso de polícia, mas sinceramente acho que se eles tivessem acesso a outras opções de lazer e diversão talvez arriscassem suas vidas de maneira diferente. Enquanto isso, no leito do Rio, luxuosas lanchas, que em nada ficam devendo àquelas que desfilam no Lago Paranoá ou na Marina da Glória, carregadas de “gente bonita” e muita bebida, em arriscadas manobras disputam espaço entre si, com os jet ski e com as pequenas e simples embarcações de agricultores ribeirinhos que retornam as suas casas depois de um dia na feira. E o trânsito das lanchas está longe de ser caso de polícia!
            Enquanto esse tipo de prova da doença social for ignorada e não entrar efetivamente na agenda dos governantes e sociedade em geral, perderemos tempo discutindo a ética profissional de médicos, depois engenheiros, enfermeiros, advogados, jornalistas, motoristas e assim por diante.

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