quarta-feira, 9 de maio de 2012

Acre: a ruidosa realidade indígena por trás da cortina de fumaça do governo Tião Viana e Sesai

Delegação com 40 indígenas do Acre esteve em Brasília durante esta semana para reuniões na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério da Educação e Procuradoria Geral da República (PGR). Vindos direto da ocupação da sede regional da Funai em Rio Branco, que começou em 18 de abril, as lideranças representam dezenas de povos com reivindicações relativas a problemas fundiários, de educação e saúde.

Conforme as lideranças indígenas, a ocupação parece não sensibilizar o governo federal, tampouco o governo estadual. Mesmo com a ruidosa realidade vivida pelos indígenas, onde entre outubro de 2011 e abril deste ano 24 crianças morreram de diarreia no Alto Rio Purus e alunos são obrigados a abrir os guarda-chuvas dentro da sala de aula em dias de tempestade, nenhuma medida concreta de resolução das dificuldades foi tomada pelos governos.

Ao contrário, a resposta dos gestores públicos ficou em promessas e a elaboração de programas que nunca se efetivaram – como a histriônica campanha anunciada em janeiro deste ano, pela Sesai e Secretaria de Saúde do Acre, para combater as mortes por diarreia no Purus. Hospital de campanha, voadeiras (barcos rápidos), helicóptero e equipes de saúde percorrendo as aldeias, além da distribuição de 600 filtros de barro, não passaram de medidas nunca cumpridas – conforme atestou equipe que percorreu o rio Purus (leia texto abaixo).

Em Brasília, porém, as reuniões não ocorreram. Na Funai, a presidenta Marta Azevedo não pôde recebê-los alegando não ter agenda. Na Sesai a situação foi constrangedora: as lideranças foram informadas de que não havia ninguém para atendê-los. Ao ameaçar um protesto, foram recebidos pelo secretário Antônio Alves e toda sua equipe. Alves alegou não ter sido encaminhado nenhum pedido de reunião. Ao receber o protocolo comprovando a solicitação, mudou o discurso e informou aos índios que eles tinham entrado por outro anexo do Ministério da Saúde. 

No entanto, com as autoridades que se dispuseram a reuniões com os indígenas as lideranças alegam terem tido uma estranha constatação: o governo do Acre tem dissimulado informações, omitindo os problemas e construindo uma imagem de que o estado atende as demandas dos povos indígenas, sobretudo na área da saúde e educação. Por sua vez, o governo federal também deixa de cumprir com as obrigações fundiárias, de saúde e educação.

De acordo com os indígenas, a situação forma um mosaico de tragédias. Ressaltaram também que o governo Tião Viana segue tentando aliciar as comunidades indígenas a aceitar os projetos de comércio de carbono e REDD, baseados em acordos entre o Poder Público acreano e o governo da Califórnia, Estados Unidos.

Leia trechos da primeira parte de uma série de reportagens sobre a situação da saúde indígena no Acre, intitulada Mortos no Paraíso: Uma Jornada Rio Purus Adentro, publicada desde abril pelo jornal Porantim. Com o texto, mostramos parte da angústia vivida pelos indígenas, que agora estão em Brasília em luta para serem ouvidos pelas autoridades públicas.  


Surto de diarreia faz 24 vítimas e escancara situação da saúde indígena no Acre

Por Renato Santana,
de Santa Rosa do Purus (AC)
O dia era de ajie na aldeia Madja. A festa com canto e dança não obedece a calendário ou hora. Pela manhã as mulheres se levantam e com varinhas cutucam os homens para irem caçar. Elas ficam na casa e lá reúnem o que há de macaxeira, arroz e milho. O dossehe, tal como os Madja chamam a busca por comida, é parte integrante da festa; a caça trazida pelos homens e a comida organizada pelas mulheres são espalhadas em panelas no centro do terreiro, sobre uma lona amarela. Alimento pouco para tantos e logo não sobra mais nada. No geral, mulheres e crianças se alimentam antes, pois cozinham e os pequenos ficam ao redor. Às margens do rio Purus, Acre, essa festa ocorre entre os Madja quando há escassez de comida e dividir é herança doutras estações, no período em que os indígenas viviam em grandes malocas, no interior da floresta, e não na beira do rio em casas separadas. Porém, apenas o dossehe foi possível de ser realizado. A ajie não. Os tempos são de dificuldades e mortes na Terra Indígena do Alto Rio Purus.


Chamada por Euclides da Cunha de “um paraíso perdido”, quando o escritor lá esteve em expedição durante o ano de 1905, a região do Alto Purus segue exuberante, longe do desenvolvimento propagado por quase um século de exploração da seringa, ameaçada pelas novas promessas depredatórias de crescimento social, caso do agronegócio, madeireiras e empresas estrangeiras interessadas na captação de carbono, e com suas populações tradicionais violentadas por todos os anos de esbulhos e violações. Entre essas populações os povos Madja e Huni Kuĩ, comunidades com a memória viva das expulsões do território e massacres sofridos com a chegada da seringa e agora lançadas à sorte determinada por projetos faraônicos estatais que viram entulho nas aldeias, falta de assistência médica e um quadro de saúde alarmante.

Durante 20 dias, equipe composta por integrantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), um assessor da Federação Huni Kuĩ e dois barqueiros percorreu as aldeias da Terra Indígena do Alto Purus. O objetivo era investigar junto aos índios os motivos que levaram a morte de crianças indígenas, sob os mesmos sintomas: diarreia, vômito e febre. Ao fim da jornada, iniciada no dia 11 de fevereiro e encerrada no dia 2 de março, os cadernos de anotações davam conta de 22 nomes de meninos e meninas, abaixo dos cinco anos, que foram a óbito. Em março, a notícia de mais uma morte, e no início de abril outra – sinal claro de que as mortes não cessaram. Outras crianças apresentavam quadros variados de anemia, sendo alguns casos idênticos ao visto em países africanos de fome absoluta.
As marcas da morte estavam por todos os lados. Uma mulher indígena grávida, que morreu por falta de pré-natal, um suicídio impulsionado pelo consumo de álcool, sendo que o indígena se atirou de um barranco para dentro das águas caudalosas e turbulentas do Purus, além da falta de saneamento e a inoperância dos órgãos públicos em controlar a situação – apesar da operação anunciada no fim de janeiro, em Rio Branco, pelo coordenador da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Antônio Alves. O relatório com as denúncias e as imagens captadas pela equipe foram encaminhados ao Ministério Público Federal do Acre pela Federação Huni Kuĩ e Cimi.


No acre, o Purus corre entre as cidades de Santa Rosa do Purus, fronteira com o Peru, e Sena Madureira, divisa com o Amazonas, percurso do rio que nasce no vizinho sul americano e deságua no estado amazonense. As águas do Purus cortam de forma vertical o estado, num trajeto com cerca de 500 km. Na Terra Indígena do Alto Rio Purus, homologada em 2005 depois de demarcada quase duas décadas antes pelos indígenas, 45 aldeias estão organizadas de forma social e política num espaço humano, cultural e natural de 465 mil hectares. Nesse pedaço de terra da Amazônia brasileira vive o menino Madja com desnutrição aguda e ‘acusado’ de ter fugido para o mato quando os profissionais do Samu foram buscá-lo para tratamento e não o encontraram. Sem nenhuma proximidade com a questão indígena, a equipe chegou de forma brusca e ao lado de dois Huni Kuĩ, povo que mantém questões históricas com os Madja. O medo da mãe foi tamanho de ver o filho sequestrado, que o levou para se esconder na floresta. A criança, portanto, seguiu doente na aldeia. O ajie teve de ficar para outro dia. 

A operação

A aldeia Família é uma das maiores às margens do Purus. De tão próspera, dela nasce a Nova Aliança – expansão social e política do núcleo habitacional de origem. Nelas vivem indígenas do povo Huni Kuĩ. Ligadas por laços familiares, as comunidades choram quatro crianças mortas na aldeia Família durante surto de diarreia, febre e vômito. Morreram uma seguida da outra, em oito dias, na última quinzena de dezembro do ano passado. No dia de Natal, Hilário Augusto Huni Kuĩ enterrou a pequena Juçara, de 1 ano.

“Levei minha filha para Santa Rosa do Purus, mas ela continuava ruim. Tinha cãibras e só fazia vomitar e ter diarreia. Encaminhamos então nossa menina para Rio Branco. Juçara ficou três dias na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e depois morreu. Foram quatro paradas cardíacas. Ela não resistiu”, conta Hilário, vice-prefeito de Santa Rosa. O surto no rio Purus não distingue possíveis privilégios. Porém, o indígena conseguiu transporte em embarcação rápida, a chamada voadeira, para os municípios de Santa Rosa, Manoel Urbano ou até mesmo para a capital do estado, Rio Branco.

Das 24 crianças mortas, 15 feneceram na aldeia sem nenhum atendimento médico ou acesso a medicamentos. Em poucas aldeias Madja e Huni Kuĩ foram encontrados envelopes de soro caseiro, mas nenhuma orientação de como prepará-lo com sal e açúcar. A vida mudou de prisma para Hilário depois da morte da filha. Enquanto antes passava mais tempo em Santa Rosa do Purus, agora fica na aldeia ao lado da companheira “tentando esquecer, mas é impossível”. O indígena aponta que depois que a Sesai substituiu a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), as duas equipes de saúde que percorriam o Purus no início e fim do mês deixaram de atuar. Não há mais remédios e o Polo Básico de Saúde, em Santa Rosa, está inoperante.    
       
“Depois que minha filha morreu, uma equipe de Brasília (Ministério da Saúde) chegou a Santa Rosa, mas não fizeram nada de relevante, além de papeladas. Não distribuíram remédios, não foram às aldeias. Nada.”, diz. Apenas um mês após a morte de Juçara, além de outras crianças durante o período, ocorreu a reunião entre o secretário da Sesai Antônio Alves e a secretária de Saúde do Acre, Suely Melo, em Rio Branco. Na ocasião ambos anunciaram uma operação que contava com helicóptero, hospital de campanha no meio da Terra Indígena do Alto Rio Purus, embarcações e equipes de atendimento. Mais um mês para frente, apenas uma equipe do Samu (dois médicos, dois enfermeiros e dois técnicos), vinda do Piauí, com o apoio do Exército, estava em Santa Rosa. Porém, sem cumprir agenda de visitas às aldeias, pois a voadeira do Polo não estava funcionando – as desculpas posteriores foram: falta de remédios e autorização para sair em operação. A morte, por sua vez, seguia o curso normal de dor para as famílias indígenas. 

“Surpreendeu-nos chegar a Santa Rosa, percorrendo as aldeias, vindos de Manoel Urbano, mostrarmos 18 mortes (contabilizadas até aquele momento) e o pessoal da Secretaria de Saúde do município dizer que tinham apenas oito. Não queriam nem saber de que aldeias eram ou como as mortes se deram. Não assustou ninguém. Quando chegamos a Santa Rosa, estava tudo alagado (por conta da cheia do Purus) e a desculpa foi essa para o polo estar fechado, sem o rádio funcionando e medicamentos disponíveis”, afirma o missionário do Cimi, Rodrigo José Domingues. A equipe do Samu estava parada em Santa Rosa; primeiro por falta de medicamentos, depois se esperava por uma autorização e, por fim, não tinham pedidos de socorro registrados.

Para o professor Edmilson Sampaio Esteves Huni Kuĩ, da aldeia Nova Família, seu filho de sete meses só morreu, porque não tinham medicamentos e tampouco assistência. “Não tínhamos como acessar o tratamento. O rádio não funciona e as equipes deixaram de passar. Espero que com essas mortes o atendimento ocorra, a atenção do governo”, lamenta. O professor explica que Vinícius, seu filho, morreu em três dias com forte diarreia, vômito e cãibras. Apesar dos outros quatro filhos, a tristeza ainda não deixou os olhos de Edmilson. Pelo visto, os indígenas ainda terão que esperar por mais competência dos governos.

O Pró-Acre deveria ter entregado, conforme programação da operação anunciada em Rio Branco, 600 filtros de barro às aldeias. Apenas 170 chegaram aos indígenas, incluindo os quebrados. Pelo constatado nas comunidades do Purus, a maioria dos filtros não foi instalado, sendo que a outra parte foi montada errada, com a vela invertida do sentido correto para a filtragem da água. “Tivemos aldeias com três mortes e nenhum filtro entregue. Assim como teve aldeia que não registrou ninguém morto e todos receberam filtros. Segundo alguns indígenas, para cada filtro eram requisitados os documentos de identidade, CPF e título de eleitor”, explica o assessor da Federação Huni Kuĩ, Adriel Lima Guimarães.
 
“Bebemos água da chuva” 

Cacique Maurício Huni Kuĩ, da aldeia Porto Alegre, fala com a voz embargada. O filho do indígena, ao que tudo indica, é a primeira vítima do surto. Marcinho morreu em 20 de outubro de 2011, depois de uma semana doente e com apenas nove meses de vida. Mal a família tinha se recuperado da perca, no último dia 2 de fevereiro Nemerson, o neto recém-nascido do cacique, não resistiu durante dois dias depois de apresentar também diarreia, vômito e febre. Quanto mais nova a criança, menor é o tempo de vida depois de contraídos os sintomas. Isso ao menos nas aldeias do rio Purus.

“Estamos todos tristes. Deixam a gente morrer. Não recebemos remédios, consultas e não entregaram nenhum filtro. Minha aldeia não recebeu. Vieram aqui, pegaram os nomes dos meninos mortos e foram embora. Só isso”, amarga cacique Maurício. Para piorar a situação, no final de janeiro e início de fevereiro deste ano a cabeceira do rio Purus, nos Andes peruanos, deve ter sido assoberbada por alguma tempestade fazendo com que ele enchesse em todo seu trajeto, incluindo seus afluentes – os rios Acre, Yaco, Chandless, além de quase meia dúzia de igarapés. Vários pontos no Acre ficaram debaixo d’água e as aldeias do Purus mais vulneráveis ao rio alagaram-se.

As águas das cacimbas, usadas pelos indígenas e abertas nas encostas, entre o rio e as comunidades, submergiram nas águas barrentas do Purus. “Ficamos sem água e o jeito foi pegar a da chuva. Aqui na aldeia tomamos água das chuvas, porque não tínhamos mais de onde tirar. Temos uma vertente, mas ela fica a 5 quilômetros da aldeia”, frisa o cacique. No geral, as mulheres ficam encarregadas de ir buscar a água, em bacias, panelas e baldes. As vertentes são fontes de água retiradas comumente de algumas espécies de árvores ou origem de um poço. Os indígenas sabem como poucos os melhores lugares para a abertura. O problema é que não são ouvidos pelos técnicos do governo: amiúde se encontra nas aldeias poços de 60 metros secos. Dessa forma, os indígenas buscam outras fontes de água e aí está um dos principais motivadores do surto: as precárias condições de saneamento básico. 

Fonte: Blog do Padilha

Nenhum comentário: