Entrevista com Michael Schmidlehner,
fundador da Amazonlink. A entrevista foi conduzida por e-mail, em Agosto de
2015.
(Tradução
livre da entrevista original em inglês, publicada em www.redd-monitor.org/2015/08/27/interview-with-michael-schmidlehner-amazonlink/ )
REDD-Monitor:
Por
favor descreva seu trabalho e seu papel na organização Amazonlink.org.
Michael
Schmidlehner: Eu co-fundei a organização em 2001 e
a partir dai a presidi. O objetivo era apoiar e fortalecer as comunidades das
florestas na Amazônia por meio de acesso à informação e de comércio justo.
Estabelecemos contatos com lojas de um mundo na Alemanha para a venda de
artesanato indígena.
Em 2003, quando os compradores alemães
estavam interessados em comercializar doces de cupuaçu, fomos confrontados com
o fato de uma empresa japonesa ter registado o nome da fruta como sua marca
registrada. Nós entendemos que este era um caso grave de biopirataria e
denunciamos os fatos através da web e da imprensa. Juntos com outras organizações
brasileiras abrimos um processo no Instituto Japonês de Patentes e, em 2005, a
marca foi cancelada. O caso cupuaçu chamou maior atenção pública no Brasil para
a questão dos direitos sobre os recursos genéticos e a proteção de
conhecimentos tradicionais. Nesta época, Marina Silva foi ministra do Meio
Ambiente. Ela estava preocupada com a implementação dos princípios
estabelecidos pela Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e, neste contexto
executamos o protejo Aldeias Vigilantes no Acre, financiado pelo governo
brasileiro. O protejo visava empoderar
comunidades indígenas, informando-os sobre os seus direitos em relação à
protecção dos seus conhecimentos tradicionais.
Após a
execução de Aldeias Vigilantes, Amazonlink.org não realizou mais projetos. Em
2011, Amazonlink.org assinou a Carta
do Acre. Nesta declaração rejeitamos junto com
trinta outros grupos da sociedade civil a política do capitalismo verde no
Acre. A assinatura deste documento marcou uma cisão entre nossa organização e o
Governo do Acre e as ONG a ele ligados e
provocou a retracção de uma parte dos nossos associados. Desde então, um
pequeno grupo dos membros originais continua fazendo campanha por justiça
climática e pelos direitos dos Povos das Florestas, principalmente em
cooperação com o CIMI (Conselho Indigenista Missionário).
REDD-Monitor: Qual é a
sua posição sobre REDD? Por favor, descreva os seus pontos de vista sobre o
desenvolvimento de um mecanismo de REDD internacionalmente e no Brasil.
Michael
Schmidlehner: Em grande parte, a minha posição
sobre REDD deriva da experiência com Aldeias Vigilantes. Por um lado, fomos
confrontados com a realidade de comunidades dependentes da floresta no Acre.
Por outro lado, tivemos de considerar as políticas e discursos promovidos por
grandes ONGs, empresas, governos, agências de desenvolvimento e as Nações
Unidas. Eu podia ver como irrealista e enganadora a ideia de "repartição
justa e equitativa dos benefícios" – como prevista pela CBD – é.
A ideia de que uma comunidade
dependente da floresta poderia ser beneficiada em longo prazo por um projeto de
bioprospecção é da mesma maneira utópica, como por um projeto REDD. Estes
projetos não resultam das demandas da comunidade, mas são impostas de cima para
baixo. Baseados nas ideias de comercialização e financeirização dos recursos
biológicos, eles não são apenas incompatíveis com a relação que estas
comunidades possuem com a natureza, mas de fato corroem esta relação.
No contexto internacional, REDD visa
transferir a responsabilidade para a crise climática de sociedades
industrializadas para as comunidades florestais, do norte para o sul. REDD (bem
como os pagamentos para os chamados serviços ambientais), na verdade reproduz
relações coloniais de poder. Sendo apresentado como se fosse uma solução para a
crise, REDD tende a mascarar o problema real (que é basicamente a queima de
combustíveis fósseis), bem como impedir que as sociedades reconheçam a urgência
e a necessidade de abordar as causas principais (produção e consumo excessivos
por parte das sociedades ricas).
O Brasil ocupa uma posição especial
nas negociações da CBD e UNFCCC. Ambas as convenções foram criadas na Eco-92 em
Rio de Janeiro, e sempre houve uma expectativa de que a enorme diversidade
biológica do Brasil poderia impulsionar seu desenvolvimento, e que este país
poderia, de alguma forma ser pioneiro numa transição global para
sustentabilidade e justiça ambiental e
climática. Hoje, no entanto, o curso dos acontecimentos no país aponta na
direcção oposta.
No Brasil, a implementação de REDD faz
parte de um amplo processo de transferência do controle sobre os recursos
naturais, retirando-o de pequenos agricultores e comunidades tradicionais, e concentrando-o
nas mãos de oligarquias locais e corporações multinacionais. Este processo
apoia-se em antigas estruturas de poder, decorrentes do período colonial,
reforçadas durante o período da ditadura e paradoxalmente reiteradas no atual
governo do Partido dos Trabalhadores.
Uma série de novos regulamentos
legais, estaduais e nacionais, tais como SISA (a lei do estado Acre 2308 de
2010), o Novo Código Florestal (Lei nº 12.651 de 2012), a nova lei da
Biodiversidade (Lei nº 13,123 de 2015) e PEC 215 (emenda constitucional) criam
um novo quadro legislativo que acelera esse processo de concentração.
Para a elite financeira brasileira,
REDD oferece mais uma oportunidade de acumulação de capital. Grandes áreas de
floresta com posse de terra insegura – agora elegíveis para projetos de REDD –
estão sob crescente ameaça de grilagem. Enquanto desempoderando comunidades
dependentes da floresta, REDD está se tornando um negócio lucrativo para os
latifundiários, especuladores e ONGs intermediárias.
REDD-Monitor: Apesar
de ainda não existir uma decisão na UNFCCC sobre se REDD será um mecanismo de
mercado de carbono, várias organizações internacionais e ONGs estão promovendo
uma versão de REDD como mercado de carbono (por exemplo, o Banco Mundial,
UN-REDD, The Nature Conservancy, Fundo
de Defesa Ambiental dos EUA, Conservation Internacional e WWF). Qual é a sua
posição sobre REDD como um mecanismo de mercado de carbono?
Michael
Schmidlehner: O pressuposto fundamental dessas
organizações, como exposto no estudo TEEB (programa dos países G8 para
viabilizar a Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade) é que humanos
seriam incapazes de preservar recursos naturais, enquanto não houver um valor
monetário atribuído a estes. Além de uma concepção infeliz da humanidade (como
meramente impulsionada por uma lógica de ganância e incapaz de mudar), este
argumento apoia-se no mito malfadado da auto-regulação do mercado.
A história das finanças globais nos
mostra que mercados sem restrições tendem a produzir situações distorcidas e
instáveis. Assim como a especulação com empréstimos habitacionais nos EUA levou
ao desastre financeiro em 2008, o comércio de carbono, serviços ambientais e
derivados dos mesmos pode causar uma bolha financeira.
Na vida real, mais e mais projetos
REDD estão se revelando como ineficazes, socialmente injustos e em muitos casos
fraudulentos.
É importante entender que essas falhas
não são algo que poderia ser corrigido por medidas adicionais, como os chamados
salvaguardas socioambientais. Estas falhas, na verdade, são consequencias de uma contradição fundamental que é
intrínseca a projetos ambientalistas com financiamento pelo mercado. Por um
lado, estes projetos são baseados em dados facilmente maleáveis, suposições e hipóteses.
Por outro lado, eles são movidos por uma intenção de lucro muito concreta.
Deixe-me dar um exemplo. Os projetos
Purus, Valparaiso e Russas no Acre são projetos REDD-plus privados promovidos
pela empresa estadunidense CarbonCO LLC. O Projeto Purus foi certificado por
duas certificadoras internacionais VCS (Verified Carbon Standard) e CCBS (Climate Community and Biodiversity
Standards), neste último caso, até com “Distinção Ouro”. O projeto já emitiu e
vendeu certificados de carbono para eventos, como a Copa do Mundo de 2014, no
Rio de Janeiro, supostamente contribuindo para a neutralidade de carbono do
evento.
Em 2013, a
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e
Ambientais (DhESCA) empreendeu uma missão nas três áreas de projeto. A missão
revelou graves violações dos direitos básicos das comunidades residentes (ver
relatório aqui). Alguns dos moradores disseram
que os promotores do projecto tinham dado um incentivo “segredo” para
desmatamento: “Ele disse assim, em 2014, “o desmatamento é para ser zero. […] quem precisa desmatar um hectare por ano,
este ano desmate dois hectares, quem desmata dois, desmate quatro.”
O incentivo para desmatamento, vindo
de um promotor de um projecto de proteção ambiental, à primeira vista parece
paradoxal, mas é facilmente explicado pelo princípio de “adicionalidade”, que
geralmente subjacente a todos os projetos do tipo REDD: A prova de que as
emissões foram evitadas é possível apenas pela comparação entre o cenário
"positivo" do projeto e um cenário hipotético "negativo"
que teria acontecido nesta área sem o projeto. Neste cenário
"negativo" mais emissões teriam ocorrido. Mostrando a diferença entre
os dois cenários – a chamada adicionalidade do projeto – os promotores do
projeto procuram provar que o projecto teria de fato evitado emissões.
Quer se trate da adicionalidade, da
contagem de carbono, do consentimento de uma comunidade: informações serão
sempre suscetíveis de serem distorcidas, manipuladas ou falsificadas em
projetos de REDD financiados pelo mercado. A arquitetura complexa dos projetos
de REDD faz uma abordagem participativa e um efetivo controle impossível. Em um
contexto comercial esta obscuridade facilita comportamentos calculistas,
manobras escondidas ou práticas fraudulentas.
REDD-Monitor: REDD, é
claro, faz parte de desenvolvimentos recentes muito maiores, tais como o
capitalismo verde e a financeirização da natureza. Diante deste contexto, você
acha que seria possível ter uma versão "bem sucedida" de REDD que não
envolve o comércio de carbono?
Michael
Schmidlehner: REDD, sendo financiado através de um
fundo (e não através da venda dos certificados dos próprios projetos)
provavelmente seria um mal menor. Os projetos seriam independentes dos
instáveis mercados de carbono e a interferência direta de corporações em
comunidades dependentes da floresta poderia ser evitada.
Ao mesmo tempo, enquanto pagamentos
são baseados em resultados (pagamento de acordo com a quantidade de emissões de
CO2 reduzidas), REDD – mesmo não financiado pelo mercado – sempre terá sérios impactos sobre comunidades
dependentes da floresta. Esta chamada abordagem baseada nos resultados obriga
as comunidades indígenas para alterar sua forma tradicional de interação com a
floresta (na verdade, a forma com qual eles preservaram as florestas desde
tempos imemoriais) e cumprir com as normas estabelecidas pela atual ciência
ocidental do clima.
Ainda está em aberto, se a UNFCCC vai
adotar um mecanismo de mercado para o financiamento de REDD ou não. Muitas
outras questões relativas a REDD terão que ser resolvidos antes da constituição
de um novo regime climático (como esperado para a COP 21, em dezembro deste
ano). Por exemplo: Qual escala será usada para o financiamento? Financiamento
em nível de projeto, sub-nacional ou nacional?
Em todos os casos possíveis, REDD não
pode contribuir de forma eficaz para combater a crise climática. Devemos
lembrar que apenas 11% das emissões de dióxido de carbono causadas pelo homem
vêm do desmatamento, ao passo que cerca de 65% são provenientes de indústrias e
da queima de combustíveis fósseis.
Acima de tudo, devemos ter em mente
que o REDD não aborda as verdadeiras causas do desmatamento. Os principais
fatores no Brasil são pecuária extensiva, plantações de monoculturas como soja,
cana-de-açúcar ou de óleo de palma, bem como a atividade madeireira industrial.
Essas atividades são geralmente realizadas por oligarquias locais e corporações
multinacionais.
Em muitos países como também no
Brasil, esses grupos têm forte influência sobre o governo. Seja regulamentado
pelo mercado ou pelos governos, REDD sempre acabará transferindo o controle
sobre áreas de floresta para estes grupos. Reduzir o desmatamento, em última
análise, é em primeiro lugar um desfio
político, e muito menos um problema técnico. REDD – cada vez mais promovido
como se fosse uma solução tanto para as florestas quanto o clima – ofusca esse
fato.
REDD-Monitor:
REDD
trouxe muita atenção para as florestas do Acre, com a WWF, IUCN, a Universidade
Federal do Acre, IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), o Centro
de Pesquisa Woods Hole, Embrapa e GTZ (Cooperação Técnica Alemã, agora
renomeada GIZ) e KfW (banco de desenvolvimento da Alemanha), todos trabalhando em
aspectos de REDD no Acre. Toda essa atenção – e financiamento – não são coisas
boas?
Michael
Schmidlehner: O Acre está sendo projetado como
vitrine para a economia verde por essas organizações. Internamente, no Acre,
isso favorece apenas um pequeno grupo de pessoas, enquanto em geral tem efeitos
de autoritarismo estatal e censura. O pequeno grupo de pessoas que se beneficia
do financiamento é composto por funcionários do governo, consultores de ONGs
relacionadas ao governo, e algumas selecionadas líderanças de sindicatos e de
organizações indígenas. A grande maioria dos povos da floresta não recebe
quaisquer benefícios do financiamento internacional. Privados de muitos de seus
direitos fundamentais, eles vivem em uma situação de escassez e insegurança e –
o que o torna a situação pior – sua condição é sistematicamente mascarada.
Externamente uma falsa imagem do Acre
é propagada. EDF, bem como GIZ e WWF buscam exibir as políticas de economia
verde do Acre como se fossem baseadas na demanda dos povos da floresta e como
se fossem alinhadas com a luta histórica destes povos.
Depois de receber o Prêmio Chico
Mendes de Florestania do Governo do Acre em 2008, Steve Schwarzmann do EDF
escreveu: “É, de fato, em parte, devido ao legado de Chico que os negociadores
internacionais sobre o clima na convenção do clima das Nações Unidas passaram a
maior parte da primeira metade do mês de Dezembro em Poznan, Polónia debatendo
se e como países com florestas tropicais e povos da floresta que reduzem o
desmatamento da floresta poderiam ser compensados através de um novo acordo
sobre o clima para entrar em vigor em 2013.”
Um artigo sobre programa de
financiamento “REDD Early Movers” (REM)
do KfW no Acre – após informar-nos que o
coordenador deste programa recebeu o Prêmio Chico Mendes do Governo do Acre –
afirma: “O governo federal alemão gostaria, no futuro, ampliar o bem-sucedido
Programa REM para o Equador, Colômbia e países asiáticos. Algo que Chico Mendes
também teria aprovado.” Nada poderia estar mais longe da verdade! Chico Mendes
era um auto-declarado socialista. Retratando-o como se fosse o patrono do
capitalismo verde e distorcendo a história do movimento de povos da floresta,
estas organizações propagam a falsa solução de REDD fora do Brasil e em nível
das Nações Unidas.
Em 2012,
na conferência Rio+20, um grupo de ativistas do Acre, incluindo eu, lançou o Dossier Acre. Neste documento, argumentamos que as políticas de
economia verde no Acre, ao invés de representarem um exemplo bem-sucedido,
exemplificam justamente a falência deste modelo, revelando-o como
ambientalmente destrutivo e socialmente excludente.
Até agora nossas muitas críticas à
política de economia verde do estado, apresentadas no Dossiê Acre e várias
outras publicações, têm sido sistematicamente ignoradas pelo Governo do Estado
e os patrocinadores de REDD como KfW.
Agora, um
número crescente de pessoas na Alemanha também está questionando o
financiamento REM no Acre. Recentemente, um pedido de informações foi
protocolado no Bundestag (parlamento alemão.) (Veja a consulta em alemão aqui) Esperamos que este inquérito pode instigar um debate
mais amplo entre a sociedade civil alemã e levar a uma reavaliação das metas de
financiamento da Alemanha no Acre. Há uma necessidade urgente de apoiar do
povos indígenas neste estado na luta por seus direitos. O dinheiro alemão
poderia ser aplicado bem mais efficiente, atendendo as reais necessidades dos
povos da floresta, como demarcação de terras indígenas e serviços de saúde e
educação para as comunidades abandonadas.
REDD-Monitor: os
defensores de REDD muitas vezes alegam que REDD é uma forma de garantir o
respeito pelos direitos dos povos indignas, em particular os direitos à terra.
Qual é a sua experiência de REDD e os direitos dos povos indígenas no Acre?
Michael Schmidlehner: REDD
ameaça tanto o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente
ocupadas, quanto seu direito ao uso auto-determinado dos recursos em suas
terras. Em 2012, o presidente da Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC)
Ninawa Huni Kui denunciou: “No Acre, a demarcação de territórios indígenas está
paralisada porque eles querem tomar a nossa terra para fazer lucros com
serviços ambientais, através de programas como REDD.”
De fato
existem 21 terras indígenas ainda a serem demarcadas no Acre. Todos os
processos de demarcação estão paralisadas desde 1999. Esses territórios estão
freqüentemente sendo invadidos por não indígenas, e sob constante pressão,
exercida por latifundiários e empresas. REDD é uma oportunidade de compensação
e um lucrativo investimento para estes atores e aumenta esta pressão. Dentro
dos territórios, restrições ambientais ameaçam a segurança alimentar das
comunidades. Um membro de uma das comunidades, entrevistado pela relatora da Missão
DHESCA afirmou: “ São tantos anos que a gente vêm sofrendo. Este ano
ficamos mais prejudicados porque não podemos roçar. Os fazendeiros podem, e a
gente não pode? Somos 24 famílias, como vamos sobreviver?”
REDD-Monitor: Ao mesmo
tempo que o REDD está sendo implementado no Acre, o Congresso do Brasil está
considerando uma mudança constitucional (PEC 215) que iria transferir o poder
para demarcar terras dos povos indígenas da FUNAI para o Congresso. Quais são
as implicações da PEC 215 para os direitos indígenas e para o futuro de REDD no
Acre?
Michael Schmidlehner:
Atualmente, quase todos os processos de demarcação estão paralisadas no Brasil
porque o governo atrasa o trabalho da FUNAI na medida em que não passa os
recursos necessários para este. A PEC 215 é agressivamente promovida pela
chamada Bancada Ruralista que detém uma posição de poder sem precedentes no
Congresso Brasileiro e, em muitos aspectos domina o governo federal. Se a PEC
215 for aprovada, provavelmente não uma única terra indígena será mais
demarcada futuramente no Brasil.
Existem massiços interesses em cima
das terras indígenas: mineração, petróleo (em Acre, possivelmente, até mesmo
fracking), criação de gado ou monoculturas, construção de rodovias e ferrovias
(no Acre provavelmente atravessando os territórios de povos indígenas sem
contato). Os mesmos grupos de interesse que promovem essas atividades querem se
apropriar das remanescentes florestas em pé (e de preferência despovoadas) para
lucrativos esquemas de compensação. O novo Código Florestal, assim como SISA
viabilizam estes esquemas.
Enquanto SISA facilita compensação de
emissões, os novo Código Florestal cria a Cota Rural Ambiental CRA que serve
para compensar desmatamento. O mercado com os CRA oferece sinergias com o
mercado de carbono, permitindo múltiplas possibilidades de compensação. Uma
área de floresta única no Acre agora pode ser usado duas vezes para a
compensação: para compensação de emissões (SISA) e para a compensação de
desmatamento (novo Código Florestal).
Através da PEC 215 e através de REDD,
corporações multinacionais aliadas com oligarquias locais, procuram adquirir
direitos sobre territórios indígenas, ou por meio da expulsão dos povos de seus
territórios, ou tutelando-os dentro dos territórios.
REDD-Monitor: Um
direito importante para os povos indígenas é o princípio de consentimento
livre, prévio e informado (CLPI). Por favor, descreva a sua experiência do
processo de CLPI na criação de REDD no Acre, incluindo a consulta pública para
a Lei Estadual 2.308 que instituiu o Sistema Estadual de Incentivos para
Serviços Ambientais (SISA) em 2010.
Michael Schmidlehner: A lei
SISA passou em apenas dois dias pela Assembléia Legislativa do Acre em
"caráter de urgência". Ela foi sancionada em 22 de outubro de 2010,
tarde da noite após uma apresentação power point por um representante da Forest
Trends.
A "urgência" encontrou sua
explicação quando apenas quatro dias depois, em 26 de outubro, o Fundo Amazônia
(dinheiro do governo norueguês, KFW e Petrobras, administrado pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico BNDES) concedeu 66,7 milhões de reais ao
Governo do Acre para o projeto
de Valorização do Ativo Ambiental Florestal do Acre . Até hoje temos muito
pouca transparência sobre a aplicação destes recursos.
A
implementação de REDD no Acre é impulsionada pelo dinheiro que é injetado no
estado, com a finalidade de criar uma vitrine para políticas de economia verde.
Não obstante, o governo do Acre alega que SISA é o resultado de amplas
consultas com as partes interessadas. Ao mesmo tempo este governo informa que apenas 174 pessoas foram diretamente consultadas: 85
técnicos de organizações não-governamentais (provavelmente aquelas mencionadas
na quinta questão); 50 trabalhadores extrativistas, 30 indígenas e nove
representantes de organizações de classe. Dada uma população de quase 800 mil
pessoas no Acre, isto é quase nada.
Desde 2010, foram organizadas várias
reuniões e oficinas sobre REDD e SISA. Nós não sabemos, o que realmente
aconteceu nesses eventos (relatórios não são publicados). Ainda assim, é claro
que estes eventos suscitam grandes expectativas de retornos financeiros entre
os povos indígenas.
Em uma das
oficinas, Almir Surui do povo Paiter Suruí foi convidado para falar sobre um
projeto de REDD que ele promove em Rondônia (RO). O evento foi noticiado com as
palavras “A palestra de Almir Narayamoga Suruí, chefe dos Paiter (RO), no
último dia da Oficina de Informação sobre o Sistema de Incentivos a Serviços
Ambientais (Sisa), acabou com as dúvidas das lideranças indígenas do Acre e
encheu todos – índios e não-índios -, de esperança: a proteção da floresta e da
biodiversidade tem valor, é em dólar e aos milhões”. Ao mesmo tempo,
obviamente, muitas dúvidas permaneceram após o evento, como expressou um dos
participantes: “ainda não está claro o que vai ser vendido, como vai ser
vendido, quem vai acompanhar, quem vai negociar, o que é mesmo essa venda, como
vai ser feita”
A
ininteligibilidade do REDD, juntamente com a expectativa financeira causa
profundas divisões entre os indígenas. Os promotores de REDD escondem
sistematicamente tais problemas e depois conjuram aquilo que chamam
consentimento livre, prévio e informado.
Tais
divisões e distorções encontram-se perfeitamente exemplificadas no supracitado
projeto Suruí, cujo implementação foi baseada em um CLPI promovido
pela organização Forest Trends e que causou
graves problemas e aprofundou
conflitos entre este povo. Durante anos, este
projeto foi apresentado para os povos indígenas no Acre como exemplo a seguir,
e hoje as mesmas divisões e distorções estão ocorrendo aqui.
Neste
ponto devemos também questionar a viabilidade de um consentimento livre, prévio
e informado (CLPI) no dado contexto. Como o consentimento de uma comunidade
pode ser livre, enquanto esta carece dos recursos básicos para satisfazer as
necessidades mínimas, e enquanto tem seus direitos fundamentais ameaçados? Até
que ponto o consentimento pode ser chamado prévio? Prévio à quê? Antes de a
proposta de um projeto REDD geralmente há nessas comunidades numerosas
intervenções por parte do governo ou de ONGs do ambientalismo de mercado. Estas
intervenções, tais como implementação de manejo florestal, programas de
etno-mapeamento ou formação de agentes agro-florestais indígenas, fomentam a
predisposição das comunidades para aceitar este tipo de projeto. E acima de
tudo, o que significa "informado"? Quanta informação e que tipo de
informação se considera necessários para que uma uma comunidade possa decidir
sobre um projeto REDD? Quem poderia fornecer informação imparcial? Quais são os
impactos deste processo de informação sobre o equilíbrio social e cultural de
uma comunidade indígena?
REDD-Monitor: Nos cinco
anos depois de 2003, o desmatamento no Acre caiu em 70%. Isto foi em parte
resultado dos preços das commodities agrícolas, mas também foi o resultado de
uma série de políticas, monitoramento do governo e aplicação da lei. Isso
aconteceu antes de REDD. A taxa de desmatamento está aumentando (a área
desmatada em 2014 foi a maior desde 2006). Você vê REDD como potencialmente
apoiando estas medidas anteriores para reduzir o desmatamento, ou, na
realidade, minando os sucessos anteriores?
Michael
Schmidlehner: Em primeiro lugar, a taxa de
desmatamento – com base em dados de satélite – só leva em conta a quantidade de
corte raso. A maciça extração de madeira através do chamado manejo florestal
madeireiro já causou degradação das florestas no Acre antes de 2003. A
dimensões desse desmatamento oculto até hoje estão desconhecidas.
O aumento
da taxa de desmatamento na Amazônia brasileira certamente tem a ver com a
subida do dólar e das exportações de soja e
carne. Ao mesmo tempo, este aumento deve ser entendido no contexto novo
Código Florestal de 2012. Essa lei concedeu generosas anistias para crimes de
desmatamento. Muitos proprietários rurais estão agora livres de multas
relacionadas a desmatamentos que ocorreram antes de Julho de 2008. Isto é
largamente interpretado por eles como uma licença para desmatar.
Acima de
tudo, o novo Código Florestal marca a transição de uma política de recuperação
ambiental para uma política de compensação ambiental e assim cria fortes
sinergias entre o agronegócio e projetos
do tipo REDD (como descrito na resposta à
sétima questão).
A
expectativa de amnistias futuras e as novas possibilidades de compensação são
provavelmente as principais causas do aumento do desmatamento desde 2013. REDD
faz parte dessa dinâmica. As áreas florestais a partir das quais as
supracitadas Cotas Rurais Ambientais (CRAs) são emitidas também podem ser usado
simultaneamente para a geração de créditos de carbono. Em vez de penalizar os
grandes desmatadores, o novo Código Florestal em combinação com REDD cria novas
oportunidades de negócio para eles.
REDD-Monitor: Acre é
um dos membros fundadores da Força Tarefa de Governadores para o Clima e
Florestas (GCF), criado sob o então governador da Califórnia Arnold
Schwarzenegger em 2009. Qual é a sua visão do GCF? Ele ajudou em reduzir o
desmatamento e apoiar os direitos das comunidades locais e povos indígenas no
Acre?
Michael
Schmidlehner: A Força Tarefa de Governadores para
o Clima e Florestas (GCF) promove o REDD subnacional. A ideia é que estados ou
províncias membros do GCF adotam normas jurídicas que lhes permitem estabelecer
um mercado de carbono florestal regulamentado entre eles. Há vários problemas
com esta abordagem. Muitas questões técnicas como a medição de carbono,
adicionalidade (como descrito na resposta à terceira questão), o “vazamento” (o
fato de que a proteção de uma área florestal muitas vezes leva ao aumento do
desmatamento no entorno) e “permanência” (o fato de que uma floresta pode ser
destruída por causas imprevistas) são muito difíceis (na verdade, impossível)
de enfrentar a nível subnacional.
Em nível
nacional, REDD seria tecnicamente mais viável. As leis estaduais que facilitam
o mercado de carbono subnacional ainda tendem a estar em conflito com as
constituições dos países. No Brasil, por exemplo, a constituição define o
ambiente natural como "bem de uso comum". A lei SISA é visto por seus
críticos como inconstitucional, por permitir a comercialização dos chamados
serviços ambientais, tal como seqüestro de carbono florestal.
Durante as
duas últimas COPs podíamos perceber que o governo brasileiro não aprova
iniciativas de REDD em nível estadual, mas quer negociações bilaterais ocorram
apenas em nível federal. Na visão do governo federal, REDD subnacional tende a
comprometer a soberania do país sobre seus recursos naturais. Ao adotar um
mecanismo nacional de REDD, o Governo Federal pode, no futuro, até mesmo
proibir acordos subnacionais. Para evitar isso, os promotores do REDD
subnacional propõem a chamada Abordagem Aninhada com o propósito de harmonizar
REDD em diferentes escalas. Entretanto, esta abordagem, na realidade, torna os
complexos mecanismos REDD ainda mais complicados.
Ainda
assim, o governo do Acre insiste em sua estratégia subnacional.
Internacionalmente apresentado como pioneiro em REDD, o Acre é um dos
principais intervenientes no GCF. Atualmente, o Governador do Acre também é o
presidente do GCF. O principal parceiro do Acre no grupo é a Califórnia. Em
2010, os governadores da Califórnia, Chiapas, Acre e assinaram um Memorando de
Entendimento que prevê a compensação de emissões de indústrias da Califórnia
através de REDD+ no Acre e Chiapas. Enquanto a maioria das pessoas no Acre tem conhecimento
nem deste acordo, nem do GCF, um pequeno, mas crescente número de organizações,
líderes comunitários e ativistas se opõe a estas iniciativas.
Em 2013,
25 organizações e 40 indivíduos rejeitaram o negócio planejado com a Califórnia
em uma carta
aberta. Os principais argumentos são que as
partes que seriam afetadas pelos projetos REDD+ não foram ouvidos, que o REDD+
não vai efetivamente reduzir emissões de carbono ou desmatamento e que este
mecanismo de fato agrava o quadro de injustiça socio-ambiental.
REDD-Monitor: O que
você vê como as maiores ameaças para os povos e florestas do Acre? E o que você
vê como a melhor maneira de lidar com essas ameaças? REDD pode desempenhar um
papel para no enfrentamento destas ameaças?
Michael
Schmidlehner: A maioria dos cientistas do clima
concordam que, se as alterações climáticas continuarem no ritmo atual, as
florestas tropicais podem deixar de existir ainda neste século. Se levarmos
isso a sério, e se levarmos em conta o fracasso global dos governos e das
Nações Unidas, que não tiram as consequências certas, vamos chegar à conclusão
de que a mudança climática seria a maior ameaça para todos nós, e particularmente
para comunidades dependentes da floresta como os do Acre.
A reação
correta a esta crise seria de deter a queima de combustíveis fósseis e de mudar
os padrões de produção e consumo das sociedades industrializadas. Estas medidas
urgentes serão atrasadas enquanto soluções falsas como REDD estão sendo
propagadas por uma pequena elite que persegue seus interesses particulares.
Especialmente aqui no Acre, sendo este estado usado como uma vitrine para REDD,
devemos denunciar esta falsa solução.
A mudança
climática é o sintoma mais tangível de uma crise muito mais ampla que
compreende toda a nossa organização socio-económica e nossa relação com a
natureza, e esta crise exige uma mudança global radical. Se acreditamos na
possibilidade desta mudança, e se acreditamos que um “outro mundo” é possível
em escala global, antes de tudo, temos de nos opor à destruição dos poucos
"outros mundos" que ainda existem a nível local em nosso planeta.
Em outras
palavras, precisamos respeitar os povos indígenas na sua diferença cultural,
deter os crescentes interesses industriais e comerciais que incessantemente
invadem seus territórios, e apoiar a luta política dos povos indígenas pelos
seus direitos e por sua autonomia.
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