quarta-feira, 26 de outubro de 2016

“Espírito corporativo” e “espírito de classe”: apontamentos para uma reflexão sociológica sobre a polícia

Israel Souza[1]
            Em razão de uma onda de violência que tem vitimado alguns policiais em Rio Branco, um amigo pede que comentemos, num grupo de whatsapp que se posta à esquerda no espectro político, o assassinato de um policial. Em oportunidade outra, disse que “uma dificuldade na esquerda é a nossa relação com o policial, na sua perspectiva de cidadão e pai de família também”.
Implicitamente, é feita aí uma referência ao modo como a esquerda marxista define a polícia: “o braço armado do Estado”, garantidor da ordem pela via da violência. Uma definição nada simpática, diga-se.
            O texto que segue procura responder a essas e outras colocações. Também procura contribuir para a reflexão sobre o problema da violência que ora se impõe em sentido teórico e prático, problematizando o papel da polícia e sua intersecção com as classes sociais e o Estado. Para o que reputamos como uma reflexão adequada sobre o tema, julgamos necessário assumir uma visão mais geral, a fim de não ficarmos presos a um caso individual - por mais comovente e justo que seja -, extrapolando-o indevida e perigosamente.
Marxistamente, partimos do Estado e do papel que este cumpre no sistema capitalista. No entanto, embora consideremos a definição marxista da polícia como correta, em sua essência, precisamos desdobrá-la, situá-la histórica e sociologicamente, a fim de não ficarmos reféns dos jargões. Daí a importância de tratar da intersecção existente entre a polícia e as classes sociais.

Mostrando seu caráter classista e, ao mesmo tempo, revelando sua natureza violenta, o Estado (estrito senso) atua essencialmente como mantenedor do sistema capitalista. Como sabemos, este é um sistema que, inexoravelmente, gera riqueza concentrada numa ponta e miséria expandida na outra.
A polícia militar encarna e desvela a face mais crua e perversa desse Estado: a violência. Por uma questão estrutural (o lugar que ela assume no Estado) e histórico-cultural (como ela incorpora sua função), a polícia militar é treinada para lidar com “bandidos” e manter a “ordem”. A palavra “bandidos” vem assim, entre aspas, porque assim são tratados mesmo os cidadãos honestos que ousam lutar por seus direitos, como trabalhadores e estudantes[2].
            Em geral, para manter a ordem, a truculência e a letalidade são marcas da atuação policial brasileira. Isso é sobejamente ilustrado em dados e pesquisas várias. Segundo dados Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014, “em apenas cinco anos, as polícias brasileiras - civil (!) e militar - mataram tanto quanto a americana em três décadas”. (<https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html> Acessado em 15/09/2016).
Já em 2015, o “Relatório da Anistia Internacional” destacou que a “força policial brasileira é a que mais mata no mundo”. Segundo o Relatório, em 2012, “foram 56 mil homicídios (<http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016). Ainda de acordo com o Relatório, em 2014, 15,6% dos homicídios tinham um policial no gatilho”.
            Para a Anistia Internacional, os policiais “atiram em pessoas que já se renderam, que já estão feridas e sem uma advertência que permitisse que o suspeito se entregue”. Considerando o perigo, vê-se que, no mais das vezes, a violência policial é desproporcional, desnecessária e, mesmo, covarde.
Sem exageros, pode-se afirmar que se trata de um modus operandi que se naturaliza ao se internalizar e se internaliza ao se naturalizar. Com o tempo, a hierarquia e a disciplina se impõe, condicionando as consciências individuais. E, mesmo onde estas se mostram avessas à truculência e às execuções, não exercem grande força. Permanecem casos isolados, pontuais, sem grandes repercussões, incapazes de modificar tal quadro.
Assim, penso estarmos diante de um habitus de duplo caráter que responde tanto ao “espírito corporativo” como ao “espírito de classe”. Para Bourdieu, habitus é um “sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”[3]. O autor fala ainda do habitus como um “sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas” (BOURDIEU, 2007, p. 191; 201).
Por este prisma, podemos entender o modus operandi da polícia como expressão de um “sistema de disposições socialmente constituídas”, um sistema estruturado e estruturante, isto é, que se impõe ao se perpetuar e se perpetua ao se impor. Um tanto de tais disposições é inconsciente e representa o quanto as estruturas foram interiorizadas, gerando, condicionando e unificando práticas, valores e ideologias. Para usar as célebres palavras de Marx e Engels de A ideologia alemã, dizemos que é o “ser social determinando a consciência”.
Dizíamos, acima, que estamos diante de um habitus de duplo caráter que responde tanto ao espírito corporativo como ao de classe. O que aqui comparece como “espírito de classe” pode também ser tomado como “posicionamento de classe”. Um posicionamento que pode ser consciente ou não. No geral, é mais inconsciente que consciente. Daí uma classe minoritária/menor subjugar uma classe majoritária/maior.
Eis aqui o que tratamos por “intersecção da polícia com as classes sociais”. Essa intersecção se dá tanto pela “condição de classe” como pelo “posicionamento de classe”. Explicando melhor. Quando olhada a partir da sociedade e das classes fundamentais que a constituem, a polícia é parte da classe dominada, através de sua “condição de classe” (lugar de classe), elemento inelutavelmente objetivo. Afinal, é desta que sai a quase totalidade de seus membros. Entretanto, quando olhada a partir do Estado, a polícia é vinculada à classe dominante através da defesa ativa da ordem, assumindo, assim, um posicionamento favorável a esta classe. Este elemento último é de natureza subjetiva com implicações práticas, portanto, concretas, reais.
Via de regra, essa intersecção da polícia com as classes sociais é negligenciada e o que é mais patente - e, em razão disso, o mais criticado - é o “espírito corporativo”. Essa perspectiva atribui todos os problemas à corporação. Mas erra, pois, ao assim fazer, separa a polícia do Estado e da sociedade, deixando de considerar a função classista que a polícia desempenha e que a ela se impõe.
A função classista que se impõe à polícia? Quer isto dizer que ela (a polícia) não a desempenha (a função classista) em condições de plena consciência e liberdade, como os que focam unicamente na corporação parecem entender. Misturam-se, no desempenho da função, no posicionamento de classe, elementos conscientes e elementos inconscientes.
Diria mesmo que, quanto mais consciente e forte for o “espírito corporativo”, menos consciente e fortemente ativo é o “espírito classista” de sua atuação. Quanto mais convicto está o policial de que serve à sua corporação, menos consciente é de que serve, por esta via, a classe dominante, de que assume um posicionamento favorável a esta. Toda dedicação à corporação é con-vertida, através da defesa truculenta e letal da ordem, em dedicação à classe dominante.   
Para dizer sinteticamente: o “espírito classista” se abriga, fortalece e oculta no “espírito corporativo”. Daí a convicção, forte entre policiais, de que atuam indistintamente em nome de toda a sociedade. E, se usam de violência e letalidade, pensam, é por necessidade e para o bem de todos. Os fins justificariam os meios, também aqui.
Fosse consciente o fundo classista de sua função assim exercida, faltaria convicção aos policiais. Faltando convicção, a função não seria exercida com a mesma presteza, sentido de honra e espírito de sacrifício[4]. O soldado (militar) que vai à guerra precisa crer, sem reservas, na causa que defende. Caso contrário, ou se acovarda ou se rebela. Portanto, a ilusão alimenta e justifica o modus operandi. E assim, nascendo de certas condições sociais e sobre elas retroagindo, fortalecendo-as, a ideologia cumpre seu prático papel. Eis aqui o outro lado do caráter de seu habitus.
Deixando o campo da explicação teórica de lado, perguntemos: Onde é possível constatar o caráter classista da atuação da polícia?
Em primeiro lugar, basta olhar quem são suas principais vítimas. Segundo o citado Relatório da Anistia Internacional, “entre as vítimas da violência policial no Rio, entre 2010 e 2013, 99,5% eram homens. Quase 80% das vítimas eram negras e três em cada quatro, 75%, tinham idades entre 15 e 29 anos” (<http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016).
A maioria dos policiais envolvida nestes casos nunca foi punida. Os processos, quando abertos, seguem lentos e incertos[5]. A explicação para isso é relativamente simples. É o Estado sendo conivente com o Estado. No Brasil, essa é uma das principais formas de que o Estado se vale para garantir sua função de zelador da ordem. Por tanto, é impossível que em tudo seja rigoroso consigo mesmo e com aqueles que cumprem seu sujo papel. Caso contrário, seria inoperante e entraria em curto-circuito, em contradição insolúvel consigo mesmo.   
Por outro lado, abundam os casos em que policiais são penalizados ao simplesmente tentarem exercer suas funções enquadrando pessoas ricas ou personalidades[6]. Aos de baixo, truculência e execuções; aos de cima, nem mesmo autuações formais. Obviamente, há exceções quanto a isto. Mas estas só confirmam a regra. A polícia pode crescer e se impor somente aos de baixo. Passando disso, sua atuação sofre restrições. 
            Em segundo lugar, ainda quanto ao caráter classista da atuação da polícia, vale perguntar: Por que a polícia não cultua os militares revolucionários que se colocaram e se colocam ao lado do povo, como Che Guevara, Fidel Castro e Hugo Chávez? Por que tantos policiais se colocam ao lado de Bolsonaro, apologeta da repressão, do golpe de 1964 e da tortura? Fazem isso porque se identificam com essa figura, antipopular, anti-trabalhista, déspota etc.
O que aqui é colocado não é coisa de pouca monta. Diz respeito a uma questão de identidade, a como a polícia se entende, em quem ela se espelha. Como disse um militar nas redes sociais: “Feliz é a nação cujo Bolsonaro é o presidente”. Disse, certamente, guiado por seu “espírito corporativo”. Todavia, como foi dito há pouco, o “espírito classista” se abriga, fortalece e oculta no “espírito corporativo”. Desse modo, ao elogiar Bolsonaro, elogiam uma figura antipopular, anti-trabalhista, déspota, antidemocrática, características em tudo favoráveis à classe dominante. Considere-se a esse respeito a dúbia posição de Bolsonaro na votação da PEC 241/2016, negando-a, num momento, para  defendê-la, noutro.
            O que sucederia se tivesse saído da boca de Fidel, Trotsky, Che, Chávez ou mesmo de Lula o que saiu da boca de Bolsonaro sobre sonegação, estupro e tortura? Ouso ainda perguntar: Por que os militares brasileiros não cultuam os militares que, no Brasil, se colocaram contra o golpe de 1964?
Como sabemos, havia uma corrente de militares que apoiava Jango e via nas reformas de base que ele propunha um importante caminho para o Brasil[7]. Embora tratada como “subversiva”, essa corrente que contava com bases em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul mantinha uma posição nacionalista e lutava por direitos para os militares, como os de patentes mais baixas poderem votar. Entre outras, defendia reformas como a bancária, a fiscal, a urbana, a administrativa, a agrária e a universitária.
O apoio hipotecado ao então presidente se devia também ao fato de ele defender a necessidade de estender o direito de voto aos analfabetos e às patentes subalternas das Forças Armadas, além de uma maior intervenção do Estado na vida econômica e do controle dos investimentos estrangeiros no País, acompanhado da regulamentação das remessas de lucros para fora.
Durante o período ditatorial, 7,5 mil membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à ditadura. Embora essas medidas atingissem oficiais, a maioria dos vitimados eram cabos e soldados[8].
Vê-se, pelo exposto, que as reivindicações assumidas pelos militares que se opuseram ao golpe de 1964 são facilmente identificáveis como democráticas. Entretanto, eles não são cultuados por seus pares, irmãos de farda. E, se o são, é de modo um tanto tacanho.
Ainda hoje, militares que ousam discordar da corporação são constrangidos ou imediata e severamente punidos. Um “policial conta que virou persona non grata em grupos no WhatsApp e tem suas postagens no Facebook ridicularizadas. Num dos posts, ele reprova a ação de PMs acusados de cometer uma chacina para vingar a morte de um amigo. “Todos disseram ‘como você faz isso? O cara (assassinado) era pai de família’. E as famílias dos meninos mortos não estão sofrendo, não? Sou visto como uma anomalia. Muitos dizem que sou um lixo.” (<http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/policiais-pensadores/> Acessado em 04/10/2016)
Veja-se, também, o caso recente do soldado João Figueiredo da Silva, do Rio Grande do Norte, que criticou a corporação nas redes sociais. Para ele, “Esse estado policialesco não serve nem ao povo e muito menos aos policiais que também compõe uma parcela significativa de vítimas do atual contrato social brasileiro. Temos uma polícia que se assemelha a jagunços, reflexo de uma sociedade hipócrita, imbecil e desonesta”. E ainda: “repito: o modelo de polícia ostensiva baseado nos moldes militares é uma aberração para o estado democrático e de direito, a começar pelo exercício da cidadania nesse ambiente onde a importância do subordinado se resume apenas a um elemento de execução”.
Em entrevista, o soldado conclui: “a nossa conduta tem reflexos diretos no tratamento ao povo. Um pm que dorme em ambiente inóspito, que come mal, que é mal tratado, isso é uma bomba prestes a estourar em cima do povo, e é uma bomba”. (<http://www.esquerdadiario.com.br/Soldado-tem-prisao-decretada-apos-criticar-Policia-Militar-na-internet> Acessado em 27/09/2016).
Muito claramente, a hierarquia cumpre aí o papel de disciplinamento físico e ideológico. Coisas como essa evidenciam que militares projetam nos civis o regime de exceção a que estão submetidos. Não obstante, pelo que vimos há pouco, é possível perceber que o habitus dos militares não é fechado, absoluto, a ponto de impedir manifestações e posturas verdadeiramente democráticas. Muitos são os que se postaram e se postam neste sentido. Entretanto, o que mais ganha vulto na cena política é uma atuação militar elitista, antidemocrática, antipopular, antitrabalhista etc.
            As raízes de tal postura são encontradas ao longo de nossa história. Lembremos que, pelas mãos dos militares, o Brasil virou uma república, conservadora, antipopular. Uma Res-pública que nasce sem público/povo e contra o público/povo. Uma república “costurada” por cima, contra os de baixo.
            Passado que se faz presente. Em nossos dias, como à época do regime ditatorial, os militares continuam tratando manifestações e reivindicações democráticas como “subversivas”. São inúmeros os casos de violência contra estudantes, professores, trabalhadores, manifestantes em geral e jornalistas por todo o país.
Isso é notório, sobretudo, sob governos de orientação claramente despótica. Esse é outro elemento que, pela mediação do Estado e da defesa da ordem, desnuda o “espírito classista” da atuação da polícia. Quanto mais sujeito aos interesses da classe dominante, mais déspota é o governo e mais truculenta a atuação que este exige da polícia - São Paulo e Paraná são exemplos disso. O antipetismo e a fascistização da política, que grassam em nosso meio e vêm alimentado o antiesquerdismo de largas fileiras policiais, apenas dificultam ainda mais as coisas.
Esse fator mostra que a explicação para atuação truculenta e letal por parte da polícia não se encontra apenas na corporação. Para entender seu modus operandi é necessário considerar a corporação, sua relação com o Estado/governo e o papel que este opera no sistema (a favor de uma classe e contra a outra).  
            Por fim, um ponto nada desimportante. Quase paradoxalmente, embora cumpra uma das mais importantes funções para o Estado e para os que dominam, a polícia é desassistida. Quase tudo o que lhe oferecem é precário: treinamento, equipamento, valorização, salário, condições de trabalho e etc. A frase “Fardado, você também é explorado[9], ouvida em manifestações diversas, mostra aqui toda sua verdade e põe à luz outra dimensão da intersecção da polícia com as classes sociais.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014 aponta que, entre as polícias do mundo, a brasileira é a que mais morre vítima da criminalidade (<https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html> Acessado em 15/09/2016).
É a que mais mata. É a que mais morre. Assim a polícia brasileira. Como explicar isso? Ora, de um lado e do outro, o que temos é pobre matando pobre. A classe dominante e os governos querem que a polícia faça o papel sujo que lhes convém, mas dela não cuidam. Afinal, quase a totalidade da polícia é formada por pobres e, neste sentido, são tão descartáveis quanto os outros pobres.
A diferença a ser ressaltada é que muitos dos pobres da polícia morrem defendo o Estado e os dominantes, os inimigos de ambos os grupos de pobres. Os da polícia e os que não são da polícia. Além do mais, aí como em nenhum outro lugar, os pobres sobreviventes desta guerra (entre pobres) cumprem a função mais que explícita de “exército de reserva”. A eles cabe manter os salários sempre baixos e, por força de uma necessidade sempre renovada, ocupar o lugar dos que se “foram” e matar e morrer em nome da “ordem”[10].
Chegados a este ponto, é possível perceber que focar unicamente e comover-se com a morte de um policial honesto 1) pode levar a homogeneizar a polícia como corporação virtuosa[11]. Coisa que ela não é. Outrossim, 2) pode levar a ignorar que o Estado local (Acre) descuida da questão social. Importa lembrar que, segundo dados do Ipea, o estado do Acre apresentou a maior desigualdade da região amazônica e a segunda maior do país, perdendo, quanto a isso, apenas para o DF (SOUZA: 2014, 235-6).
É fora de dúvida que estas condições sociais têm relação direta com o fato de termos, percentualmente, o maior número de detentos do país. Os “descobertos” pela política social - que no capitalismo, em todo caso, pode ter apenas papel cosmético, inglório - são “cobertos” pela “política policial”. E assim, como entre o século XVII e inícios XX, a questão social volta a ser tratada como questão policial, cabendo à polícia uma função nada honrosa.
3) Como se pouco fosse, isso pode levar também a ignorar que o governo baixou a guarda para o crime organizado que por aqui (Acre) vem se instalando em razão da precariedade da segurança pública e da desassistência à própria polícia. Em conversas informais, os próprios policiais afirmam que, por várias vezes, alertaram o governo quanto à atuação de diversas facções no estado. O governo se fez de rogado, atuando apenas quando e onde era impossível ignorar ou encobrir a atuação violenta e criminosa de tais facções.
4) Demais, pode levar a uma homogeneização negativa dos desvalidos em geral, daqueles que se enquadram em certo estereótipo de suspeitos. Os membros da polícia quando assassinados viram heróis. E os desvalidos, quando assassinados, viram o quê?
            E, por fim, 5) pode levar a legitimar a truculência e a letalidade por parte da polícia, a sacralizar a violência do Estado e a considerá-la como o caminho único ou o melhor para resolver os problemas da segurança. Tudo isso poderá levar a considerar o fracasso das políticas sociais do Estado como seu sucesso. Em síntese, o conjunto de tudo isso pode levar a considerar a truculência e a letalidade do Estado como um graça descida dos céus, prova de inigualáveis misericórdia, bondade e amor.
            Tenho parentes e amigos na polícia. E eu os amo e respeito. E, da mesma maneira que não os quero mortos só por serem da polícia, também não os quero truculentos e letais só por serem da polícia. Não os quero assassinos. Não os quero assassinados. É preciso saber quem é o verdadeiro inimigo.  
Bom saber que, em pesquisa relativamente recente[12], 77,2% dos policiais são a favor da desmilitarização da PM. Entretanto, nossa quadra histórica não é das melhores. Em momentos assim, de retrocesso social como o que atravessamos, crescem, num mesmo processo, a criminalidade e a repressão policial. Mais pobres tombando, de ambos os lados, uns pelas mãos dos outros. O medo e o sentimento de vingança - insuspeito sob o manto da defesa da justiça - apenas servirão como combustível ao fogo da violência.
Ademais, nesse tipo de cenário, a desmilitarização deixaria a polícia ainda mais vulnerável, imprestável para o papel que as classes dominantes e os governos querem que ela desempenhe. Isso coloca sérios obstáculos a uma reorientação na atuação policial.
 Desse modo, seguimos tateando, entre sombras e luz. Sofrendo porque a polícia mata, sofrendo porque a polícia morre. Mas convictos de que, como dizia Marx em suas Teses sobre Feuerbach, mais que compreender, é preciso mudar o mundo. É preciso encarar e efetivar uma mudança epocal, isto é, uma mudança histórica e estrutural. Apenas numa sociedade diferente e num Estado diferente é possível pensar numa polícia diferente.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Reio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
SOUZA, Israel Pereira Dias de. Democracia no Acre: notícias de uma ausência. Rio de Janeiro: Editora Publit, 2014.

Sites e blogs visitados

Agente de trânsito terá que indenizar magistrado em R$ 5 mil por dizer que “juiz não é Deus”. Disponível em <http://extra.globo.com/noticias/economia/agente-de-transito-tera-que-indenizar-magistrado-em-5-mil-por-dizer-que-juiz-nao-deus-14446492.html> Acessado em 24/09/2016
Força policial brasileira é a que mais mata no mundo, diz relatório. Disponível <http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016
GEYGER, Rafael. Polícia brasileira mata e morre mais do que em outros países. Disponível em <https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html> Acessado em 15/09/2016

GOMBATA, Marsílea. A resistência militar contra o golpe de 1964Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html> Acessado em 15/09/2016

MARANHÃO, Fabiana. Pesquisa diz que 77,2% dos policiais são a favor da desmilitarização da PM. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/07/30/um-terco-dos-policiais-brasileiros-pensa-em-deixar-corporacao-diz-pesquisa.htm> Acessado em 04/10/2016

Soldado tem prisão decretada após criticar Polícia Militar na internet. Disponível em





[1] Cientista Social com habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional, professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre (IFAC), Campus Cruzeiro do Sul. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[2] “Nossa formação é voltada para guerra - existe nós e os inimigos. E às vezes são os cidadãos que juramos defender”, diz um policial entrevistado (<http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/policiais-pensadores/> Acessado em 04/10/2016)
[3] O “grupo de agentes” aqui em tela é a polícia que, ao longo de todo o texto, é tratada como “corporação”.
[4] De sacrificar e sacrificar-se, para aclarar a questão.
[5] “A Anistia Internacional acompanhou 220 investigações sobre mortes causadas por policiais desde 2011. Em quatro anos, em apenas um caso, o policial chegou a ser formalmente acusado pela Justiça. Em 2015, desses 220 casos, 183 investigações ainda não tinham sido concluídas” (<http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016).
[6] Vide o caso da agente de trânsito que foi obrigada a indenizar o juiz por dizer a ele, numa operação da Lei Seca, que “juiz não é Deus”. O juiz dirigia um veículo sem placa identificadora e sem Carteira Nacional de Habilitação (<http://extra.globo.com/noticias/economia/agente-de-transito-tera-que-indenizar-magistrado-em-5-mil-por-dizer-que-juiz-nao-deus-14446492.html> Acessado em 24/09/2016).
[7] As informações deste e dos dois parágrafos que a ele se seguem foram extraídas do artigo A resistência militar ao golpe de 1964 (<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html> Acessado em 15/09/2016).
[8][8] O número, que remete ao período da ditadura cívico militar, não leva em conta repressão, tortura e mortes antes do golpe, apesar de perseguições a militares datarem do ano de 1946. “Eles eram presos, por exemplo, por participar de manifestações em relação a grandes causas nacionais, como ‘O Petróleo é Nosso’ e contra a ida de tropas brasileiras para a Guerra da Coreia” (<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html> Acessado em 15/09/2016).
[9] A frase foi utilizada numa música pela banda Titãs.
[10] Entre outras coisas, isso é importante para que não romantizemos a profissão policial, umas das mais ingratas. Nem todo indivíduo se torna policial por amor à ordem e à justiça. Uns tantos abraçam a profissão por força das necessidades. Feito isso, as obrigações, a hierarquia, a disciplina, a necessidade de lutar pela própria vida, o hábito etc. moldam o espírito do policial padrão.
[11] Daí fazermos uma abordagem social, e não pessoal. O policial - bom ou ruim - deve ser analisado de acordo com suas práticas e valores, em conformidade com sua corporação e de tudo o que vimos discutindo a esse respeito.
[12] A pesquisa "Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública" foi promovida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Fundação Getúlio Vargas e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/07/30/um-terco-dos-policiais-brasileiros-pensa-em-deixar-corporacao-diz-pesquisa.htm> Acessado em 04/10/2016).

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