Em
razão de uma onda de violência que tem vitimado alguns policiais em Rio Branco,
um amigo pede que comentemos, num grupo de whatsapp
que se posta à esquerda no espectro político, o assassinato de um policial. Em
oportunidade outra, disse que “uma dificuldade na esquerda é a nossa relação
com o policial, na sua perspectiva de cidadão e pai de família também”.
Implicitamente, é feita
aí uma referência ao modo como a esquerda marxista define a polícia: “o braço
armado do Estado”, garantidor da ordem pela via da violência. Uma definição
nada simpática, diga-se.
O
texto que segue procura responder a essas e outras colocações. Também procura
contribuir para a reflexão sobre o problema da violência que ora se impõe em
sentido teórico e prático, problematizando o papel da polícia e sua intersecção
com as classes sociais e o Estado. Para o que reputamos como uma reflexão
adequada sobre o tema, julgamos necessário assumir uma visão mais geral, a fim
de não ficarmos presos a um caso individual - por mais comovente e justo que
seja -, extrapolando-o indevida e perigosamente.
Marxistamente, partimos
do Estado e do papel que este cumpre no sistema capitalista. No entanto, embora
consideremos a definição marxista da polícia como correta, em sua essência,
precisamos desdobrá-la, situá-la histórica e sociologicamente, a fim de não
ficarmos reféns dos jargões. Daí a importância de tratar da intersecção
existente entre a polícia e as classes sociais.
Mostrando seu caráter
classista e, ao mesmo tempo, revelando sua natureza violenta, o Estado (estrito senso) atua essencialmente como
mantenedor do sistema capitalista. Como sabemos, este é um sistema que,
inexoravelmente, gera riqueza concentrada numa ponta e miséria expandida na
outra.
A polícia militar encarna
e desvela a face mais crua e perversa desse Estado: a violência. Por uma
questão estrutural (o lugar que ela assume no Estado) e histórico-cultural
(como ela incorpora sua função), a polícia militar é treinada para lidar com
“bandidos” e manter a “ordem”. A palavra “bandidos” vem assim, entre aspas,
porque assim são tratados mesmo os cidadãos honestos que ousam lutar por seus
direitos, como trabalhadores e estudantes[2].
Em
geral, para manter a ordem, a truculência e a letalidade são marcas da atuação
policial brasileira. Isso é sobejamente ilustrado em dados e pesquisas várias. Segundo dados
Anuário
Brasileiro de Segurança Pública de 2014, “em apenas cinco anos, as polícias
brasileiras - civil (!) e militar - mataram tanto quanto a americana em três
décadas”. (<https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html> Acessado em 15/09/2016).
Já em 2015, o “Relatório da Anistia Internacional” destacou que a
“força policial brasileira é a que mais mata no mundo”. Segundo o
Relatório, em 2012, “foram 56 mil homicídios (<http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016). Ainda de acordo com o Relatório, em 2014, 15,6% dos homicídios tinham
um policial no gatilho”.
Para a Anistia Internacional, os policiais “atiram em
pessoas que já se renderam, que já estão feridas e sem uma advertência que
permitisse que o suspeito se entregue”. Considerando o perigo, vê-se que, no mais
das vezes, a violência policial é desproporcional, desnecessária e, mesmo,
covarde.
Sem
exageros, pode-se afirmar que se trata de um modus operandi que se naturaliza ao se internalizar e se
internaliza ao se naturalizar. Com o tempo, a hierarquia e a
disciplina se impõe, condicionando as consciências individuais. E, mesmo onde
estas se mostram avessas à truculência e às execuções, não exercem grande
força. Permanecem casos isolados, pontuais, sem grandes repercussões, incapazes
de modificar tal quadro.
Assim,
penso estarmos diante de um habitus de
duplo caráter que responde tanto ao “espírito corporativo” como ao “espírito de
classe”. Para Bourdieu, habitus é um
“sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas
estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do
conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”[3]. O autor
fala ainda do habitus como um
“sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização
das estruturas objetivas” (BOURDIEU, 2007, p. 191; 201).
Por este
prisma, podemos entender o modus operandi
da polícia como expressão de um “sistema de disposições socialmente
constituídas”, um sistema estruturado e estruturante, isto é, que se impõe ao
se perpetuar e se perpetua ao se impor. Um tanto de tais disposições é inconsciente
e representa o quanto as estruturas foram interiorizadas, gerando,
condicionando e unificando práticas, valores e ideologias. Para usar as
célebres palavras de Marx e Engels de A
ideologia alemã, dizemos que é o “ser social determinando a consciência”.
Dizíamos,
acima, que estamos diante de um habitus
de duplo caráter que responde tanto ao espírito corporativo como ao de classe. O
que aqui comparece como “espírito de classe” pode também ser tomado como
“posicionamento de classe”. Um posicionamento que pode ser consciente ou não.
No geral, é mais inconsciente que consciente. Daí uma classe minoritária/menor
subjugar uma classe majoritária/maior.
Eis aqui o que tratamos
por “intersecção da polícia com as classes sociais”. Essa intersecção se dá
tanto pela “condição de classe” como pelo “posicionamento de classe”.
Explicando melhor. Quando olhada a partir da sociedade e das classes
fundamentais que a constituem, a polícia é parte da classe dominada, através de
sua “condição de classe” (lugar de classe), elemento inelutavelmente objetivo.
Afinal, é desta que sai a quase totalidade de seus membros. Entretanto, quando
olhada a partir do Estado, a polícia é vinculada à classe dominante através da
defesa ativa da ordem, assumindo, assim, um posicionamento favorável a esta
classe. Este elemento último é de natureza subjetiva com implicações práticas,
portanto, concretas, reais.
Via de
regra, essa intersecção da polícia com as classes sociais é negligenciada e o
que é mais patente - e, em razão disso, o mais criticado - é o “espírito corporativo”.
Essa perspectiva atribui todos os problemas à corporação. Mas erra, pois, ao
assim fazer, separa a polícia do Estado e da sociedade, deixando de considerar
a função classista que a polícia desempenha e que a ela se impõe.
A função
classista que se impõe à polícia? Quer isto dizer que ela (a polícia) não a
desempenha (a função classista) em condições de plena consciência e liberdade,
como os que focam unicamente na corporação parecem entender. Misturam-se, no
desempenho da função, no posicionamento de classe, elementos conscientes e
elementos inconscientes.
Diria mesmo
que, quanto mais consciente e forte for o “espírito corporativo”, menos
consciente e fortemente ativo é o “espírito classista” de sua atuação. Quanto
mais convicto está o policial de que serve à sua corporação, menos consciente é
de que serve, por esta via, a classe dominante, de que assume um posicionamento
favorável a esta. Toda dedicação à corporação é con-vertida, através da defesa
truculenta e letal da ordem, em dedicação à classe dominante.
Para dizer
sinteticamente: o “espírito classista” se abriga, fortalece e oculta no “espírito
corporativo”. Daí a convicção, forte entre policiais, de que atuam
indistintamente em nome de toda a sociedade. E, se usam de violência e
letalidade, pensam, é por necessidade e para o bem de todos. Os fins
justificariam os meios, também aqui.
Fosse
consciente o fundo classista de sua função assim exercida, faltaria convicção
aos policiais. Faltando convicção, a função não seria exercida com a mesma
presteza, sentido de honra e espírito de sacrifício[4]. O
soldado (militar) que vai à guerra precisa crer, sem reservas, na causa que
defende. Caso contrário, ou se acovarda ou se rebela. Portanto, a ilusão
alimenta e justifica o modus operandi.
E assim, nascendo de certas condições sociais e sobre elas retroagindo, fortalecendo-as,
a ideologia cumpre seu prático papel. Eis aqui o outro lado do caráter de seu habitus.
Deixando o
campo da explicação teórica de lado, perguntemos: Onde é possível constatar o
caráter classista da atuação da polícia?
Em primeiro
lugar, basta olhar quem são suas principais vítimas. Segundo o citado Relatório
da Anistia Internacional, “entre as vítimas da violência policial no Rio, entre
2010 e 2013, 99,5% eram homens. Quase 80% das vítimas eram negras e três em
cada quatro, 75%, tinham idades entre 15 e 29 anos” (<http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016).
A maioria
dos policiais envolvida nestes casos nunca foi punida. Os processos, quando
abertos, seguem lentos e incertos[5]. A
explicação para isso é relativamente simples. É o Estado sendo conivente com o
Estado. No Brasil, essa é uma das principais formas de que o Estado se vale
para garantir sua função de zelador da ordem. Por tanto, é impossível que em
tudo seja rigoroso consigo mesmo e com aqueles que cumprem seu sujo papel. Caso
contrário, seria inoperante e entraria em curto-circuito, em contradição
insolúvel consigo mesmo.
Por outro
lado, abundam os casos em que policiais são penalizados ao simplesmente tentarem
exercer suas funções enquadrando pessoas ricas ou personalidades[6]. Aos de
baixo, truculência e execuções; aos de cima, nem mesmo autuações formais.
Obviamente, há exceções quanto a isto. Mas estas só confirmam a regra. A
polícia pode crescer e se impor somente aos de baixo. Passando disso, sua
atuação sofre restrições.
Em
segundo lugar, ainda quanto ao caráter classista da atuação da polícia, vale
perguntar: Por que a polícia não cultua os militares revolucionários que se
colocaram e se colocam ao lado do povo, como Che Guevara, Fidel Castro e Hugo
Chávez? Por que tantos policiais se colocam ao lado de Bolsonaro, apologeta da
repressão, do golpe de 1964 e da tortura? Fazem isso porque se identificam com
essa figura, antipopular, anti-trabalhista, déspota etc.
O que aqui é colocado
não é coisa de pouca monta. Diz respeito a uma questão de identidade, a como a
polícia se entende, em quem ela se espelha. Como disse um militar nas redes
sociais: “Feliz é a nação cujo Bolsonaro é o presidente”. Disse, certamente, guiado
por seu “espírito corporativo”. Todavia, como foi dito há pouco, o “espírito classista” se abriga, fortalece e oculta no “espírito
corporativo”. Desse modo, ao elogiar Bolsonaro, elogiam uma
figura antipopular, anti-trabalhista, déspota, antidemocrática, características
em tudo favoráveis à classe dominante. Considere-se a esse respeito a dúbia
posição de Bolsonaro na votação da PEC 241/2016, negando-a, num momento,
para defendê-la, noutro.
O
que sucederia se tivesse saído da boca de Fidel, Trotsky, Che, Chávez ou mesmo de
Lula o que saiu da boca de Bolsonaro sobre sonegação, estupro e tortura? Ouso
ainda perguntar: Por que os militares brasileiros não cultuam os militares que,
no Brasil, se colocaram contra o golpe de 1964?
Como
sabemos, havia uma corrente de militares que apoiava Jango e via nas
reformas de base que ele propunha um importante caminho para o Brasil[7].
Embora tratada como “subversiva”, essa corrente que contava com bases em São
Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul mantinha uma posição nacionalista e
lutava por direitos para os militares, como os de patentes mais baixas poderem
votar. Entre outras, defendia reformas como a bancária, a fiscal, a urbana, a
administrativa, a agrária e a universitária.
O apoio
hipotecado ao então presidente se devia também ao fato de ele defender a
necessidade de estender o direito de voto aos analfabetos e às patentes
subalternas das Forças Armadas, além de uma maior intervenção do Estado na vida
econômica e do controle dos investimentos estrangeiros no País, acompanhado da
regulamentação das remessas de lucros para fora.
Durante o
período ditatorial, 7,5 mil membros das Forças Armadas e bombeiros foram
perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à
ditadura. Embora essas medidas atingissem oficiais, a maioria dos vitimados
eram cabos e soldados[8].
Vê-se,
pelo exposto, que as reivindicações assumidas pelos militares que se opuseram
ao golpe de 1964 são facilmente identificáveis como democráticas. Entretanto,
eles não são cultuados por seus pares, irmãos de farda. E, se o são, é de modo
um tanto tacanho.
Ainda hoje, militares que ousam
discordar da corporação são constrangidos ou imediata e severamente punidos. Um
“policial
conta que virou persona non grata em grupos no WhatsApp e tem suas postagens no
Facebook ridicularizadas. Num dos posts, ele reprova a ação de PMs acusados de
cometer uma chacina para vingar a morte de um amigo. “Todos disseram ‘como você
faz isso? O cara (assassinado) era pai de família’. E as famílias dos meninos
mortos não estão sofrendo, não? Sou visto como uma anomalia. Muitos dizem que
sou um lixo.” (<http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/policiais-pensadores/>
Acessado em 04/10/2016)
Veja-se,
também, o caso recente do soldado João Figueiredo da Silva, do Rio Grande do
Norte, que criticou a corporação nas redes sociais. Para ele, “Esse estado policialesco não serve nem ao
povo e muito menos aos policiais que também compõe uma parcela significativa de
vítimas do atual contrato social brasileiro. Temos uma polícia que se assemelha
a jagunços, reflexo de uma sociedade hipócrita, imbecil e desonesta”. E
ainda: “repito: o modelo de polícia
ostensiva baseado nos moldes militares é uma aberração para o estado
democrático e de direito, a começar pelo exercício da cidadania nesse ambiente
onde a importância do subordinado se resume apenas a um elemento de execução”.
Em
entrevista, o soldado conclui: “a nossa conduta tem reflexos diretos no
tratamento ao povo. Um pm que dorme em ambiente inóspito, que come mal, que é
mal tratado, isso é uma bomba prestes a estourar em cima do povo, e é uma bomba”.
(<http://www.esquerdadiario.com.br/Soldado-tem-prisao-decretada-apos-criticar-Policia-Militar-na-internet> Acessado em 27/09/2016).
Muito claramente,
a hierarquia cumpre aí o papel de disciplinamento físico e ideológico. Coisas
como essa evidenciam que militares projetam nos civis o regime de exceção a que
estão submetidos. Não obstante, pelo que vimos há pouco, é possível perceber
que o habitus dos militares não é
fechado, absoluto, a ponto de impedir manifestações e posturas verdadeiramente
democráticas. Muitos são os que se postaram e se postam neste sentido.
Entretanto, o que mais ganha vulto na cena política é uma atuação militar elitista,
antidemocrática, antipopular, antitrabalhista etc.
As
raízes de tal postura são encontradas ao longo de nossa história. Lembremos que,
pelas mãos dos militares, o Brasil virou uma república, conservadora,
antipopular. Uma Res-pública que nasce sem público/povo e contra o
público/povo. Uma república “costurada” por cima, contra os de baixo.
Passado
que se faz presente. Em nossos dias, como à época do regime ditatorial, os
militares continuam tratando manifestações e reivindicações democráticas como
“subversivas”. São inúmeros os casos de violência contra estudantes,
professores, trabalhadores, manifestantes em geral e jornalistas por todo o
país.
Isso é notório,
sobretudo, sob governos de orientação claramente despótica. Esse é outro
elemento que, pela mediação do Estado e da defesa da ordem, desnuda o “espírito
classista” da atuação da polícia. Quanto mais sujeito aos interesses da classe
dominante, mais déspota é o governo e mais truculenta a atuação que este exige
da polícia - São Paulo e Paraná são exemplos disso. O antipetismo e a
fascistização da política, que grassam em nosso meio e vêm alimentado o
antiesquerdismo de largas fileiras policiais, apenas dificultam ainda mais as
coisas.
Esse fator mostra que a
explicação para atuação truculenta e letal por parte da polícia não se encontra
apenas na corporação. Para entender seu modus
operandi é necessário considerar a corporação, sua relação com o
Estado/governo e o papel que este opera no sistema (a favor de uma classe e contra
a outra).
Por
fim, um ponto nada desimportante. Quase paradoxalmente, embora cumpra uma das
mais importantes funções para o Estado e para os que dominam, a polícia é desassistida.
Quase tudo o que lhe oferecem é precário: treinamento, equipamento, valorização,
salário, condições de trabalho e etc. A frase “Fardado, você também é explorado”[9],
ouvida em manifestações diversas, mostra aqui toda sua verdade e põe à luz
outra dimensão da intersecção da polícia com as classes sociais.
O Anuário Brasileiro de Segurança
Pública de 2014 aponta que, entre as polícias do mundo, a brasileira é a que
mais morre vítima da criminalidade (<https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html> Acessado em 15/09/2016).
É a que mais mata. É a que mais
morre. Assim a polícia brasileira. Como explicar isso? Ora, de
um lado e do outro, o que temos é pobre matando pobre. A classe dominante e os
governos querem que a polícia faça o papel sujo que lhes convém, mas dela não
cuidam. Afinal, quase a totalidade da polícia é formada por pobres e, neste
sentido, são tão descartáveis quanto os outros pobres.
A diferença a ser
ressaltada é que muitos dos pobres da polícia morrem defendo o Estado e os
dominantes, os inimigos de ambos os grupos de pobres. Os da polícia e os que
não são da polícia. Além do mais, aí como em nenhum outro lugar, os pobres
sobreviventes desta guerra (entre pobres) cumprem a função mais que explícita
de “exército de reserva”. A eles cabe manter os salários sempre baixos e, por
força de uma necessidade sempre renovada, ocupar o lugar dos que se “foram” e
matar e morrer em nome da “ordem”[10].
Chegados a este ponto,
é possível perceber que focar unicamente e comover-se com a morte de um
policial honesto 1) pode levar a homogeneizar a polícia como corporação
virtuosa[11].
Coisa que ela não é. Outrossim, 2) pode levar a ignorar que o Estado local (Acre)
descuida da questão social. Importa lembrar que, segundo dados do Ipea, o
estado do Acre apresentou a maior desigualdade da região amazônica e a segunda
maior do país, perdendo, quanto a isso, apenas para o DF (SOUZA: 2014, 235-6).
É fora de dúvida que
estas condições sociais têm relação direta com o fato de termos,
percentualmente, o maior número de detentos do país. Os “descobertos” pela
política social - que no capitalismo, em todo caso, pode ter apenas papel
cosmético, inglório - são “cobertos” pela “política policial”. E assim, como
entre o século XVII e inícios XX, a questão social volta a ser tratada como
questão policial, cabendo à polícia uma função nada honrosa.
3) Como se pouco fosse,
isso pode levar também a ignorar que o governo baixou a guarda para o crime
organizado que por aqui (Acre) vem se instalando em razão da precariedade da segurança
pública e da desassistência à própria polícia. Em conversas informais, os
próprios policiais afirmam que, por várias vezes, alertaram o governo quanto à
atuação de diversas facções no estado. O governo se fez de rogado, atuando
apenas quando e onde era impossível ignorar ou encobrir a atuação violenta e
criminosa de tais facções.
4) Demais, pode levar a
uma homogeneização negativa dos desvalidos em geral, daqueles que se enquadram
em certo estereótipo de suspeitos. Os membros da polícia quando assassinados
viram heróis. E os desvalidos, quando assassinados, viram o quê?
E,
por fim, 5) pode levar a legitimar a truculência e a letalidade por parte da
polícia, a sacralizar a violência do Estado e a considerá-la como o caminho
único ou o melhor para resolver os problemas da segurança. Tudo isso poderá
levar a considerar o fracasso das políticas sociais do Estado como seu sucesso.
Em síntese, o conjunto de tudo isso pode levar a considerar a truculência e a
letalidade do Estado como um graça descida dos céus, prova de inigualáveis
misericórdia, bondade e amor.
Tenho
parentes e amigos na polícia. E eu os amo e respeito. E, da mesma maneira que
não os quero mortos só por serem da polícia, também não os quero truculentos e letais
só por serem da polícia. Não os quero assassinos. Não os quero assassinados. É
preciso saber quem é o verdadeiro inimigo.
Bom saber que, em
pesquisa relativamente recente[12],
77,2% dos policiais são a favor da desmilitarização da PM. Entretanto, nossa
quadra histórica não é das melhores. Em momentos assim, de retrocesso social
como o que atravessamos, crescem, num mesmo processo, a criminalidade e a
repressão policial. Mais pobres tombando, de ambos os lados, uns pelas mãos dos
outros. O medo e o sentimento de vingança - insuspeito sob o manto da defesa da
justiça - apenas servirão como combustível ao fogo da violência.
Ademais, nesse tipo de
cenário, a desmilitarização deixaria a polícia ainda mais vulnerável,
imprestável para o papel que as classes dominantes e os governos querem que ela
desempenhe. Isso coloca sérios obstáculos a uma reorientação na atuação policial.
Desse modo, seguimos tateando, entre sombras e
luz. Sofrendo porque a polícia mata, sofrendo porque a polícia morre. Mas
convictos de que, como dizia Marx em suas Teses
sobre Feuerbach, mais que compreender, é preciso mudar o mundo. É preciso encarar
e efetivar uma mudança epocal, isto é, uma mudança histórica e estrutural.
Apenas numa sociedade diferente e num Estado diferente é possível pensar numa
polícia diferente.
GOMBATA, Marsílea. A resistência militar contra o golpe de 1964. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html> Acessado em 15/09/2016
MARANHÃO, Fabiana. Pesquisa diz que 77,2% dos policiais são a favor da desmilitarização da PM. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/07/30/um-terco-dos-policiais-brasileiros-pensa-em-deixar-corporacao-diz-pesquisa.htm> Acessado em 04/10/2016
Soldado tem prisão decretada após criticar Polícia Militar na internet. Disponível em
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Reio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
SOUZA, Israel Pereira Dias de. Democracia no Acre: notícias de uma ausência. Rio de Janeiro: Editora Publit, 2014.
Sites e blogs visitados
Agente de trânsito terá que indenizar magistrado em R$ 5 mil por dizer que “juiz não é Deus”. Disponível em <http://extra.globo.com/noticias/economia/agente-de-transito-tera-que-indenizar-magistrado-em-5-mil-por-dizer-que-juiz-nao-deus-14446492.html> Acessado em 24/09/2016
FAGUNDES, Ingrid. A notável resistência dos Policiais Pensadores. Disponível em <http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/policiais-pensadores/> Acessado em 04/10/2016
Força policial brasileira é a que mais mata no mundo, diz relatório. Disponível <http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em 15/09/2016
GEYGER, Rafael. Polícia brasileira mata e morre mais do que em outros países. Disponível em <https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html> Acessado em 15/09/2016
GOMBATA, Marsílea. A resistência militar contra o golpe de 1964. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html> Acessado em 15/09/2016
MARANHÃO, Fabiana. Pesquisa diz que 77,2% dos policiais são a favor da desmilitarização da PM. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/07/30/um-terco-dos-policiais-brasileiros-pensa-em-deixar-corporacao-diz-pesquisa.htm> Acessado em 04/10/2016
Soldado tem prisão decretada após criticar Polícia Militar na internet. Disponível em
[1]
Cientista Social com
habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional, professor
e pesquisador do Instituto Federal do Acre (IFAC), Campus Cruzeiro do Sul. E-mail:
israelpolitica@gmail.com
[2]
“Nossa formação é voltada para guerra -
existe nós e os inimigos. E às vezes são os cidadãos que juramos defender”, diz
um policial entrevistado (<http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/policiais-pensadores/> Acessado em 04/10/2016)
[3]
O “grupo de agentes” aqui em tela é a polícia que, ao longo de todo o texto, é
tratada como “corporação”.
[4] De
sacrificar e sacrificar-se, para aclarar a questão.
[5]
“A Anistia
Internacional acompanhou 220 investigações sobre mortes causadas por policiais
desde 2011. Em quatro anos, em apenas um caso, o policial chegou a ser
formalmente acusado pela Justiça. Em 2015, desses 220 casos, 183 investigações
ainda não tinham sido concluídas” (<http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html> Acessado em
15/09/2016).
[6]
Vide o caso da agente
de trânsito que foi obrigada a indenizar o juiz por dizer a ele, numa operação
da Lei Seca, que “juiz não é Deus”. O juiz dirigia um veículo sem placa
identificadora e sem Carteira Nacional de Habilitação (<http://extra.globo.com/noticias/economia/agente-de-transito-tera-que-indenizar-magistrado-em-5-mil-por-dizer-que-juiz-nao-deus-14446492.html> Acessado em 24/09/2016).
[7]
As informações deste e dos dois parágrafos que a ele se seguem foram extraídas
do artigo A resistência militar ao golpe de 1964 (<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html>
Acessado em 15/09/2016).
[8][8]
O número, que remete ao período da ditadura
cívico militar, não leva em conta repressão, tortura e mortes antes do golpe,
apesar de perseguições a militares datarem do ano de 1946. “Eles eram presos,
por exemplo, por participar de manifestações em relação a grandes causas
nacionais, como ‘O Petróleo é Nosso’ e contra a ida de tropas brasileiras para a
Guerra da Coreia” (<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-resistencia-militar-contra-o-golpe-de-1964-4212.html>
Acessado em 15/09/2016).
[9] A
frase foi utilizada numa música pela banda Titãs.
[10]
Entre outras coisas, isso é importante para que não romantizemos a profissão
policial, umas das mais ingratas. Nem todo indivíduo se torna policial por amor
à ordem e à justiça. Uns tantos abraçam a profissão por força das necessidades.
Feito isso, as obrigações, a hierarquia, a disciplina, a necessidade de lutar
pela própria vida, o hábito etc. moldam o espírito do policial padrão.
[11]
Daí fazermos uma abordagem social, e não pessoal. O policial - bom ou ruim -
deve ser analisado de acordo com suas práticas e valores, em conformidade com
sua corporação e de tudo o que vimos discutindo a esse respeito.
[12] A pesquisa
"Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da
Segurança Pública" foi promovida pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Fundação Getúlio
Vargas e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/07/30/um-terco-dos-policiais-brasileiros-pensa-em-deixar-corporacao-diz-pesquisa.htm> Acessado em
04/10/2016).
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