Bons ventos sopram nas paragens acreanas. A crítica volta a extrapolar os muros da universidade, inspirando novos sujeitos para a luta e alimentando aqueles que nunca a abandonaram. Com a proposta de contribuir para o entendimento da realidade local, a fim de nela intervir, o Movimento Anticapitalista Amazônico (MACA) coloca em marcha o projeto Dossiê Acre: a batalha das idéias. Trata-se de um projeto de estudo, pesquisa e militância. O objetivo é, a partir de uma perspectiva crítica, fazer uma releitura política da recente história acreana, sem se restringir às fronteiras estaduais e ao momento presente. Neste sentido, serão abordados diversos temas, como urbanismo, questão agrária, indígena, políticas públicas para educação e saúde, sindicatos, partidos, movimentos sociais, ambientalismo, a atuação do imperialismo na atualidade, luta de classes, etc.
Este trabalho inicia com artigos, alguns já publicados, que serão disponibilizados inicialmente na internet (insurgentecoletivo.blogspot.com). O primeiro texto a ser anunciado oficialmente como integrante do Dossiê Acre é o que segue abaixo. Trata-se de uma análise-resposta elaborada contra as ofensivas à Carta do Acre.
.Em relação ao MACA, informamos que não possui um site, embora isto cause inquietação a certas organizações. O movimento pretende se fazer conhecer pela pertinência de suas idéias, que devem ser julgadas por si próprias. Não se trata de uma ONG, mas de um movimento político “à moda antiga”, que não é patrocinado por ninguém, pautando-se antes pela liberdade de crítica.
Cartas marcadas: o triunfo da apologia
(...)
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado
(...)
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
(...)
A crise veio bater às portas do governo do estado do Acre e o falso cenário do “desenvolvimento sustentável” começou a ruir. Nos últimos meses, os estrategistas da propaganda da “florestania” viram os moradores da Floresta Estadual do Antimary, vitrine do manejo madeireiro, demonstrar a verdadeira face da exploração “sustentável” e “socialmente justa” dos “serviços florestais”. Leram a Carta do Acre contra o REDD e a mercantilização da natureza, contundente crítica elaborada por organizações brasileiras (incluindo acreanas) e internacionais à política de desenvolvimento do governo estadual, e se sentiram injuriados.
Como esperado, os espadachins foram convocados para elaborar a defesa do “governo da floresta e do povo do Acre”. Surgiram pelo menos quatro respostas, subscritas por diversas entidades [1]. Uma leitura atenta demonstra que as réplicas não passam de uma apologia descarada e vulgar, de caráter meramente propagandístico, do atual modelo político-econômico acreano. Os signatários não tiveram sequer a preocupação de tentar transmitir uma imagem de autonomia de suas organizações diante do aparelho estatal. Além disso, algumas das cartas apelam a um ridículo e desprezível chauvinismo, desqualificando a crítica a partir de uma pretensa desautorização dos que falam (“os de fora do Acre”), desnorteando o debate e fazendo transparecer certo desespero da cúpula do poder local.
Como ponto principal dos referidos documentos, destaca-se a defesa do manejo madeireiro, com a afirmação de que esta é uma política “elaborada, aprovada e implantada” por entidades da sociedade civil acreana em parceria com o governo do Estado e atores privados. Estaríamos diante de uma situação em que os conflitos de classe foram superados em nome da realização de um superior “bem comum”? Trabalhadores, sindicalistas, indígenas, governantes e empresários unidos em torno da mesma causa, benefícios partilhados de forma igualitária. Tudo isso associado à derrubada de árvores como forma de garantir a preservação da floresta. Nesse modelo ninguém perde. Do seringueiro ao dono da madeireira, todos somos favorecidos. Não é bom demais para ser verdade?
Aos apologistas do capitalismo verde gostaríamos de lembrar que a sociedade civil, longe de ser um bloco único e homogêneo, é constituída por camadas sociais com interesses e funções distintas, inclusive antagônicas. Como é evidente para qualquer pessoa que se proponha a observar a realidade, agricultores familiares e extrativistas não possuem as mesmas condições que os integrantes da Federação das Indústrias (FIEAC), por exemplo, para influenciar a elaboração de políticas públicas, especialmente aquelas que envolvem grandes interesses econômicos. E isto, infelizmente, não vale apenas para o estado do Acre. É o reflexo de um sistema dividido em classes.
No panegírico elaborado pelos sindicatos dos trabalhadores – tão confortavelmente próximos das organizações patronais na defesa do manejo –, identifica-se a crítica do modelo de “desenvolvimento sustentável” à defesa da devastação da floresta. Como se não existissem alternativas ao atual projeto em curso na Amazônia! Na tentativa de obscurecer o debate, o manifesto dos sindicalistas associa a Carta do Acre à “politicagem” da direita acreana, ao “jogo de interesses característicos de uma política rasteira” ligado aos “maus políticos que o povo tirou do poder”. Fazendo jus à melhor tradição do peleguismo, os indignados sindicalistas assumem os interesses do governo como se fossem os mesmos dos trabalhadores que deveriam representar. E, em desfavor do exercício democrático da crítica, pregam o silêncio como demonstração de amor ao Acre, trazendo tristes lembranças do tempo em que a ditadura militar sentenciava: Brasil, ame-o ou deixe-o!
O reconhecimento de qualquer mérito do governo da Frente Popular não nos impede de apontar problemas. É verdade que não vemos mais ratos roendo pacientes pelos corredores dos hospitais acreanos, como afirmam os sindicalistas. Mas, por acaso, devemos nos contentar com isso? Qualquer um que conheça a estrutura de saúde no estado percebe sua precariedade. Não importa quanto se gaste em propaganda, a população sabe, pela experiência, que a saúde por aqui não é de “primeiro mundo”, como prometido pelo governo.
E sobre a educação? A acreditar na propaganda oficial, endossada pelos sindicatos, este tema também está acima de qualquer crítica. Mas o que dizer do grande número de professores com contrato temporário, sem benefícios sociais mínimos, e que a cada final de ano vivem uma incômoda situação de insegurança em relação ao seu futuro? Se formos utilizar como válidos os critérios de avaliação de desempenho escolar defendidos pelo governo nacional, que dizer dos resultados obtidos pelas escolas acreanas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)? Entre os 27 estados da federação, o Acre ocupa a 24° posição. Assim, perguntamos àqueles que não gostam das críticas: sem denunciar esses problemas, como superá-los? Não podemos, afinal, cobrar nada do poder público? Temos direitos ou devemos apenas esperar por favores?
Outra carta-resposta, a moção dos Conselhos, destaca o “expressivo crescimento econômico” que estaria sendo experimentado no Acre através das políticas de manejo florestal. Sem dúvida, nunca se explorou tanta madeira nestas terras, como nos lembram os caminhões que circulam diariamente transportando árvores centenárias. Madeira muito valorizada no mercado internacional, especialmente quando recebe a “certificação verde” do selo FSC. Como era de se esperar, o manejo e a credibilidade do selo verde foram defendidos em manifestação pública do IMAFLORA, organização que realiza esta certificação madeireira no estado. Contudo, sabemos que o selo FSC recebe inúmeras críticas ao redor do mundo por servir como “fachada verde” a indústrias que operam causando os mais diversos danos ambientais e sociais. Essas denúncias são bem documentadas e divulgadas internacionalmente por distintas organizações, incluindo algumas das que subscreveram a Carta do Acre contra o REDD e a mercantilização da natureza [2].
Mais do que uma decisão da população acreana, o manejo madeireiro e a venda de “serviços ambientais” são a “alternativa” apresentada pelo capital ao desenvolvimento da região. O governo endossa essa via, apresentando-a como uma “vocação” econômica, atribuindo um sentido quase religioso a relações bem terrenas. Não se abre espaço para discussão dos evidentes impactos sociais e ambientais causados pelo manejo, seja nas áreas licenciadas para esta atividade, seja em seu entorno florestal, tais como: a restrição de acesso das comunidades florestais às áreas tradicionais de uso agora sob concessão para manejo empresarial de madeira, o assoreamento de igarapés, a redução dos recursos naturais de uso comunitário, como a caça e espécies medicinais e madeireiras – consequência da infraestrutura de ramais implementada e da constante circulação de máquinas dentro da floresta –, os “benefícios financeiros” não repartidos com a população afetada, etc.
Outro “argumento” apresentado para justificação das políticas governamentais de “defesa das florestas”, materializadas através de atividades econômicas como o manejo madeireiro e a venda de “serviços ambientais”, é seu pretenso “reconhecimento internacional”. A carta divulgada pela Rede Acreana de Mulheres e Homens nos informa que “grandes autoridades apóiam os mecanismos de preservação utilizados no Acre e acreditam no seu bom andamento”. Quem seriam estas “grandes autoridades”? Será que devemos ficar felizes com a aprovação demonstrada pelo “exterminador do futuro” – nome apropriado – Arnold Schwarzenegger, ex-governador da Califórnia e principal “autoridade internacional” articuladora de mercados paralelos de carbono com governos da Amazônia? A defesa de qualquer política a partir da bênção conferida por “grandes autoridades” e do seu “reconhecimento internacional” nos parece simples demonstração de subserviência. Dito de outro modo, declara uma disposição de “servir de todo o coração ao imperialismo” e não ao povo do Acre, como afirma o slogan governamental.
Com certeza, a legislação acreana a respeito dos “serviços ambientais”, uma novidade desconhecida pela população do estado, agrada a todos os promotores do mercado de carbono e de outras formas de mercantilização da natureza. Agências internacionais como a USAID e ONG's como Woods Hole Research Center e Forest Trends devem defender, em bom inglês, o mérito dessa política “genuinamente acreana”. Afinal, é incrível a semelhança entre as propostas elaboradas em Washington (para que o governo norte-americano fuja do enfrentamento de sua responsabilidade diante do “aquecimento global”) e aquelas adotadas neste estado ao sul do Equador, dando os primeiros passos para a constituição de um mercado verde lucrativo. Trata-se de uma via que simplesmente mantém a reprodução do capital – de nada servindo para resolver o problema da emissão de gases de efeito estufa – atribuindo um indecente “direito de poluir” e desmatar às grandes empresas e ao agronegócio (que podem continuar expandindo sua produção), ao mesmo tempo em que coloca em risco a autonomia dos povos tradicionais sobre os seus territórios, agora regidos por normas de uso estabelecidas por contratos de REDD.
O interessante é que, apesar de a atacada Carta do Acre contra o REDD ter elaborado uma série de críticas em relação a esse projeto, as cartas-resposta não fizeram a defesa do “processo democrático e participativo” de elaboração da Lei Estadual nº 2.308, de 22 de outubro de2010. Por que razão isso teria acontecido? Se o Acre está na vanguarda, tomando a frente dos estados da região amazônica na implementação de pagamentos por “serviços ambientais”, se antecipando inclusive à regulamentação federal, isso não deveria ser comemorado como demonstração da competência de nossos governantes?
Ao contrário do que tentam fazer parecer os apologistas, criticar o atual modelo de desenvolvimento não significa um retrocesso político aos tempos da “velha direita” (a qual, diga-se de passagem, é aliada do Partido dos Trabalhadores em âmbito estadual e nacional). Isto é somente um ardil para desqualificar qualquer contestação ou questionamento realizado em torno das ações da Frente Popular no Acre. Aos desinformados lembramos que existe esquerda para além do PT e do PC do B (já chamados de “nova direita” por aí). Não se dissolveram as diferenças, como quer fazer crer a ideologia do fim da história. Ainda podemos pensar em outros mundos que ponham fim à barbárie instituída pelo capitalismo. Não queremos o “retorno ao passado” e tampouco nos curvamos diante do autoritarismo disfarçado com o nome de “Frente Popular”.
A crítica não representa um “desvio de comportamento”, como sugerem os empresários da FIEAC. E a qualidade da resposta não pode ser avaliada pela quantidade de cartas e de entidades signatárias. Que se possibilite a existência de um debate verdadeiro. Que as “audiências públicas” não sejam realizadas a portas fechadas. Que a imprensa deixe de ser mera reprodutora da visão oficial. Que os sindicatos se coloquem ao lado daqueles que pretensamente representam. Que as demais entidades não governamentais sejam realmente distintas do governo. Por fim, que a democracia seja restaurada no Acre, pois, ao que tudo indica, este é um valor que a “Frente Popular” decididamente deixou para trás, desde que foi capturada pelo poder oligárquico.
MACA – Movimento Anticapitalista Amazônico
Novembro de 2011.
Para análise de outras contribuições ao debate, verificar:
- Alguma coisa está fora da ordem... (Guilherme Carvalho)
[1] "Carta dos Conselhos" (“Em defesa do manejo florestal sustentável no Acre”, CEMACT, CFE e CDRFS, 18/10/2011); dos Sindicatos (“Em defesa do Acre para não voltar ao passado”), s/d; Nota de esclarecimento, 19/10/2011, assinada por Joci Aguiar, da Rede Acreana de Mulheres e Homens; e da FIEAC (“Em defesa do desenvolvimento sustentável, s/d).
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