Israel
Souza[1]
Uma
onda de conservadorismo ameaça engolir o país, colocando em risco direitos
sociais e trabalhistas e a laicidade do Estado. Modificações na Constituição[2], a possível diminuição da
maioridade penal e a proposta da PEC da terceirização (4330/04) são apenas
sintomas de algo mais profundo.
O
conservadorismo sempre esteve aí. Não carece de muita explicação. Todavia, no
momento, ele se move ofensivamente como uma onda que avança ao sabor do
desgaste do governo petista, se alimenta de suas debilidades e - o mais
perigoso - ameaça bem mais que o governo e seu partido.
Centrada no conceito de
hegemonia, a reflexão que segue pretende, além de analisar este fenômeno, compreender
melhor a crise por que ora passamos. Alguns autores afirmam que passamos por
uma crise de hegemonia. Trazemos uma percepção um tanto diferente, calcada no
conceito de “funcionalidade política”. Dessa forma, diferenciamos hegemonia de
liderança política.
O
governo neoliberal e globalizante de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) teve
altos e baixos de apoio popular. Dentre outros, contaram positivamente para
esse feito: a estabilidade econômica, o controle sobre a inflação, o “Plano
real” e alguns programas assistencialistas (Bolsa alimentação, Bolsa escola,
Auxílio gás etc.).
Sua
política econômica tinha sinal ambíguo, e como tal foi recebida com fervor e
temor por parte dos dominantes. Por um lado, a proposta de sepultar a “herança
varguista” era atraente para a burguesia, pois atentava contra os direitos
trabalhistas e sociais, liberando o Estado para servir, mais generosamente, aos
senhores do mercado. As privatizações e as terceirizações são exemplares a esse
respeito.
Já
não se pode dizer o mesmo de sua proposta de liberalização econômica, que,
abrindo a economia, expunha empresas nacionais a uma concorrência desigual com
empresas estrangeiras[3].
Ao
cabo de seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso havia atraído sobre si a
oposição de movimentos sociais, sindicatos e consideráveis setores do
empresariado brasileiro. Em certo sentido, isso já configurava um quadro de
crise de representação política. A capacidade de liderança do PSDB estava
desgastada.
Dentre outras coisas,
radica-se aí a derrota de José Serra nas eleições de 2002, candidato que o partido
tucano escolheu para suceder Fernando Henrique. Como sabemos, aquelas eleições foram
vencidas por Lula (PT) que, naquele cenário de crise de representação política,
trazia algumas promessas e esperanças.
Como assinalou Francisco de
Oliveira, ao escolher José Alencar (grande empresário do ramo têxtil) como
vice-presidente, Lula acenava positivamente para o empresariado brasileiro. E,
aos setores recalcitrantes da elite à época de sua eleição, procurou acalmar
lançando a “Carta aberta ao povo brasileiro”. Ali, para ser sintético, ele
prometia respeitar os contratos e agir sem os arroubos de outrora. Entrava em cena
o “Lulinha paz e amor”, e assim o PT dava significativo passo rumo a sua
decadência política, intelectual e moral.
Programas de moradia
popular, as hidrelétricas que arruínam rios e a vida de milhares de pessoas na
Amazônia e em outras latitudes, as obras da Copa e das Olimpíadas, o PAC e os
financiamentos do BNDES mostrariam, cabalmente, até onde iria o apreço do
governo petista por certos setores do empresariado. Bem alimentados, uns
“campeões nacionais”[4] robusteceram-se ainda
mais.
À
vontade num cenário de “reprimarização da economia”, os agronegócios cresceram
muito em poder econômico e político à sombra dos governos Lula, sustentando-o
para continuarem a ser sustentados por ele. Escolhendo Kátia Abreu (PMDB) para
assumir o Ministério da Agricultura, Dilma mantém total coerência com os
governos de seu antecessor, onde o agronegócio sempre encontrou força e
prestígio. As MPs 422 e 458, que serviram para a legalização de terras
griladas, e o Novo Código Florestal o comprovam.
Por
isso e com acerto, Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirmou que “Lula entrará
para a história do Brasil não como o presidente que fez a maior reforma agrária
do país, mas como aquele que fez a maior regularização das terras públicas
griladas do Brasil”. Desprezando ou reprimindo as demandas de indígenas e
quilombolas pelo reconhecimento de seus territórios, o governo Dilma completa o
des-serviço.
Por outro lado, as origens, o
histórico e o discurso anti-neoliberal de Lula também acenavam positivamente
para sindicatos, movimentos sociais e empobrecidos em geral. Somados a isso e ladeados
por seu carisma e pela estrutura e militância do PT, a valorização do salário
mínimo e os diversos programas sociais (do Bolsa família, passando pelo Minha
casa, minha vida, ao Prouni), possibilitaram a ele ampliar e consolidar sua
base popular.
Por
sua vez, ocupando espaços no governo petista e aproveitando umas tantas
concessões a elas feitas, CUT e MST, apenas para citar duas organizações de lutas
trabalhistas e populares, ficaram dóceis. Agora que as coisas requerem uma
mobilização enérgica e contundente, são incapazes de mostrar a força e a
capacidade de dantes.
A robusta popularidade era
prova de que o então presidente conseguira sanar, largamente, a crise de
representação política deixada por seu antecessor. Sua liderança política era
assaz reconhecida. Não lhe faltaram elogios vindos de diversos setores da
burguesia. Delfim Neto, por várias vezes, exaltou sua inteligência política.
Ultimamente, também Luís Carlos Bresser-Pereira teceu suas loas. Mesmo Obama rendeu-se a seu carisma,
chamando-o de “O cara”.
Tal
era a segurança e o conforto que a administração petista oferecia a vários
seguimentos da burguesia nacional e internacional que, tratando-o como
representante de uma “esquerda racional”, o contrapunham à “esquerda radical e
irresponsável”, representada por figuras como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael
Correa.
Poucos
deram atenção ao fato de que a solidez do governo tinha por base um “equilíbrio
instável”, como só podia ser um governo de coalizão que procura se apoiar em
classes e grupos tão díspares e antagônicos. Desse modo, em razão dos cuidados e
dos descuidos do governo, foram crescendo grupos como a “bancada evangélica” e
a “bancada da bala”, os ruralistas e outros.
Importa dizer que a formação
e a atuação conservadoras do atual Congresso são, em grande parte,
responsabilidade do governo. E agora, na ausência de esquemas como o “mensalão”
e o “petrolão”, o Congresso fica cada vez mais indócil e o governo, mais
aparvalhado diante dele.
A turma do capital
financeiro não foi esquecida um só instante nos governos petistas. Ao
contrário, teve sempre seus interesses resguardados a todo custo, pois, como
disse sem falácias o ex-presidente, “Nunca na história desse país, os
banqueiros ganharam tanto”.
Impossível, entretanto, de
ser sustentada por muito tempo, a política financeira dos juros altos afetaria
aquele equilíbrio, já de si instável. Para alguns setores do empresariado, essa
política nunca foi atrativa. O vice-presidente e também empresário, José
Alencar, por muitas vezes manifestou seu desacordo quanto a isso.
Mas, enquanto deu a
estabilidade política que amplas frações da burguesia necessitavam, o governo
petista contou com seu apoio. Não por gostarem dele, mas por precisarem, pois
seus representes oficiais (aqueles saídos de suas fileiras) não poderiam fazer,
naquele momento, o que ele fazia: vencer oposições, construir consenso ativo,
dar aparência popular a um projeto eminentemente elitista e antipopular. O governo
petista era funcional.
A crise, porém, mudaria
tudo. E, na hora da tensão, já sob o atual governo, Dilma e consortes optaram
por continuar alimentando generosamente o capital financeiro. Mesmo que para
isso tivessem que diminuir o - já diminuto - investimento, atacar direitos
sociais e trabalhistas, cortar verbas e lançar mão de contingenciamentos nas
áreas da saúde e da educação. A opção feita tornava inevitável a indisposição
com seguimentos dos movimentos sociais e do funcionalismo público.
Estando em flagrante
contradição com suas propostas de campanha, os ajustes ora propostos - assim
como a volta da inflação, o aumento de impostos, o baixo crescimento econômico
e o aumento do desemprego - feriram fundamente a credibilidade e a popularidade
de Dilma. Somados à sua inabilidade política e gerencial, os escândalos de
corrupção, da maneira parcial como vêm sendo explorados pelos meios de
comunicação, aprofundam as feridas.
Os escândalos mostraram que
os generosos investimentos feitos em alguns “campeões nacionais” não eram
apenas fruto de uma crença numa espécie de “neo-desenvolvimentismo” ou de um revisitado
sonho do “Brasil grande potência”, mas fonte de caixa 2 e de enriquecimento de
alguns partidos e seus figurões. Esse era o preço do apreço dos governos
petistas por empreiteiras.
Como
se isso não fosse o bastante, ao insistir nos ajustes, o atual governo acaba
desapontando e desanimando aqueles que ainda têm coragem de sair em sua defesa,
fazendo ainda mais fundo o abismo da crise. Pesa no mesmo sentido negativo a
opção pelo apoio institucional do Congresso e partidos, um apoio caro e
incerto.
De fato, não há uma única
semana em que Cunha (Presidente da Câmara dos Deputados) e Calheiros
(Presidente do Senado), ambos do PMDB, não desmoralizem publicamente o governo
da presidente, chamando-o de corrupto, barrando matérias de seu interesse e
colocando em pauta outras que lhe constrangem e criam um sem número de
dificuldades.
Mesmo
sabendo que, como outros partidos, o PMDB é formado por grupos, vale considerar
que Michel Temer, como vice-presidente e homem forte dentro do partido, poderia
acalmar Cunha e Calheiros. Mas não o faz, e não o faz porque não quer. Nada há
que indique que, mesmo assumindo as relações institucionais, Temer altere
substancialmente esse quadro.
Em
verdade, convém ao PMDB participar do governo e colher tudo o que for possível
colher de positivo no governo. Todavia, também interessa a ele sangrar o
governo, o PT, Dilma e Lula, para, talvez, lançar candidato próprio nas
próximas eleições presidenciais ou vender mais caro seu apoio. Isso dá ao PMDB
a confortável e prestigiosa condição de “oposição dentro do governo”, uma
oposição sui generis, que se alimenta
tanto da força quanto da fraqueza do governo.
A ida de Joaquim Levy para o
Ministério da Fazenda patenteia as desastrosas opções das forças governistas e,
nesse momento em que o “equilíbrio instável” se vai desfazendo, sinaliza
claramente para que lado pendeu o governo. Em tal cenário, hoje mesmo o que de
positivo a administração petista construiu ameaça ruir.
Vê-se, por isso, quão parciais
foram aqueles que trataram os governos petistas como governos pós-neoliberais[5]. Desde os governos de Fernando
Henrique, o neoliberalismo está aí. Agora, porém, ganhou mais dramaticidade e
aflorou, inclusive, nos discursos. Ao falar da “necessidade dos ajustes”, Dilma
traduz com palavras suas o mantra neoliberal. Para ser mais direta, poderia
dizer simplesmente: “não há alternativa”.
Em suma, as ideias
dominantes continuam sendo as ideias da classe dominante. O neoliberalismo,
como ideário e projeto, impera entre os grandes partidos, independentemente de
sua coloração. Nas últimas eleições, Marina, Aécio e Dilma, discordavam de
coisas periféricas. O núcleo neoliberal, porém, era ponto pacífico entre eles,
ponto indiscutido e indiscutível.
Cremos que uma reflexão
sobre hegemonia deve ter isso em conta. Pois há quem esteja confundindo
hegemonia e liderança política. A hegemonia, tal como é possível inferir da
obra de Antônio Gramsci, envolve a liderança política, mas é bem mais ampla que
ela.
Há que se dizer que, nem
mesmo sob os governos petistas, a classe dominante perdeu a hegemonia. Num
certo sentido, ao “ceder” a condução estatal ao PT, ela se fortaleceu ainda
mais, porquanto seus interesses foram melhor atendidos sob os cuidados de um
governo, aparentemente, compromissado com os trabalhadores e empobrecidos em
geral.
Por este prisma, não
atravessamos uma crise de hegemonia, e sim de representação ou liderança
política. Ao perder sua capacidade de liderança, o governo petista perde a
funcionalidade que tinha para os interesses da classe dominante. O que tem
confundido muita gente é que isso ocorre exatamente no momento em que o governo
ataca direitos trabalhistas e sociais, isto é, quando se esmera abertamente pelos
interesses do capital.
Alguns afirmam,
acertadamente, que Dilma governa com o projeto elitista e antipopular de Aécio/PSDB.
É verdade. Mas isso não começou agora, pois Lula já governara, amplamente,
seguindo a trilha de Fernando Henrique/PSDB. Percebe-se, com isso, que, pelo
menos por parte dos de cima, a crítica não é por conta do projeto em marcha,
mas em razão de sua funcionalidade desgastada. Hoje há mais “instabilidade” que
“equilíbrio” no governo petista. Ele já não oferece mais a estabilidade tão
necessária aos dominantes.
Em função do desgaste do
governo petista, os representantes oficiais da burguesia estão à vontade para
disputar o poder político estatal que, atualmente, vacila em mãos petistas. Eles
assediam o governo, maiormente, por duas vias partidárias: PSDB e PMDB. Este
último - como Joaquim Levy -conta com a confortável condição de ser uma oposição
dentro do governo, com direito a um lugar de honra.
Não há, portanto, nenhuma
contradição em a “elite” criticar o governo Dilma. Essa crítica não é a negação
do projeto em curso. É, antes, uma crítica de cunho mais estritamente político,
expressando o desgaste do governo, de sua funcionalidade. O preço de não ter ousado
avançar, o governo petista agora paga sendo empurrado para trás.
Por fim, cumpre deixar aqui
algumas perguntas. O que será do PT, se, ainda à frente do poder estatal, sua
liderança é tão pouca? O que será dele quando voltar à condição de oposição?
Que discurso terá? Que alianças fará? Terá êxito em seus objetivos? Como agirá
nas ruas nessa quadra histórica, aberta pelo junho de 2013, em que novas vozes ali
se levantam, indispostas a lhe servirem de coro?
O PT não levou nem a
esquerda nem seu projeto para o governo, mas provavelmente os esteja levando
para a lama. Temo que este seja seu principal legado. Um estigma a pesar,
indiscriminadamente, sobre toda esquerda e suas bandeiras de luta. Lamentavelmente,
o “Brasil pós-governos petistas”, por culpa dos próprios governos petistas, pode
ser ainda mais reacionário que o de ontem e o de hoje.
[1]
Cientista Social, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal
do Acre (UFAC) e membro do Núcleo de
Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental
(NUPESDAO).
[2]
É do cabo Daciolo a proposta que pretende trocar a frase constitucional “Todo
poder emana do povo” para “Todo poder emana de Deus”.
[3] Mesmo entre os empresários, havia aqueles
que temiam a implantação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), projeto
de grande interesse por parte dos EUA e que foi rechaçada no Brasil por força
dos movimentos sociais.
[4]
Assim são chamadas algumas empresas consideradas importantes para a economia
nacional e capazes de competir com outras no mercado internacional.
[5]
Pense-se no livro organizado por Emir Sader, intitulado 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. O
livro foi lançado pela Editora Boitempo, no ano de 2013.
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