E
nós, que tanto falávamos de “judicialização da política”, agora assistimos,
absortos, a outro fenômeno, um fenômeno de dupla face: a política da
militarização e a militarização da política.
A bem da verdade, o
fenômeno não é novo. Com efeito, muitos são os autores, das mais diversas
orientações teóricas, que ressaltam a relação entre política e força. Para não
ir muito longe, pensemos em Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, Karl Marx,
Friedrich Engels, Lenin, Max Weber, Carl Schmitt, Giorgio Agamben. E por aí vai.
A lista é enorme.
Apenas
para dar apenas dois exemplos. Refletindo conjuntamente sobre política, Estado
e força/violência, Weber argumenta que “somente se pode, afinal, definir
sociologicamente o Estado moderno por um meio
específico que lhe é próprio como também a toda associação política: o da
coação física”. E continua: “o Estado é aquela comunidade humana que, dentro de
determinado território (...), reclama para si (com êxito) o monopólio da coação
física legítima (...)”. E para efeitos de sínteses, lembremos a célebre frase
de Carl von Clausewitz: "A guerra é a continuação da política por
outros meios".
Baseando-se nos
ensinamentos de Maquiavel e Marx, Gramsci forja uma teoria política mais
refinada. Sem descuidar do elemento da coação,
indispensável em qualquer forma de domínio, o autor ressalta a importância do consenso. Tratando do Estado moderno e
das relações políticas sob o capitalismo, ressalta que o domínio é exercido através
dessas duas estratégias (ou meios) que, numa relação dialética, formam um par a
um só tempo complementar e tenso: hegemonia
e ditadura.
A hegemonia diz respeito
à construção e à manutenção do domínio pela via do consenso, do convencimento,
das ideias, dos valores, da cultura e etc. Trata-se da dimensão ideológica do domínio
ou, para dizer com Bourdieu, da “dominação simbólica”. Através dela, a classe
dominante visa à “domesticação dos espíritos” da classe dominada. Assim,
condicionam-se as formas de a classe dominada perceber, interpretar e se
posicionar diante da realidade social e dos que nela prevalecem.
Além de dar a aparência
de legitimidade ao domínio da classe dominante, a hegemonia é o meio ordinário
de seu domínio, isto é, o mais usado na maior parte do tempo. Por meio dele, a
classe dominante “engendra” na classe dominada a indiferença e a resignação.
Pode até conseguir o apoio ativo dela para seus projetos e interesses. Dessa
forma, o domínio a que está submetida a classe dominada é menos sentido ou
mesmo não é sentido como tal, pois a hegemonia tende a “naturalizá-lo”, dando a
ele a aparência de inexorável.
Ocorre que, sozinha, a
hegemonia é insuficiente para garantir os interesses da classe dominante. Por
uma questão de garantia, então, esta pode recorrer à ditadura. Como aqui
entendida, esta diz respeito ao uso da coação, da força, da violência, e não
necessariamente a uma forma de governo. Sua base material (seu sujeito) é o
Estado, também conhecido como sociedade política ou governo. Este exerce poder
de força através de seus aparelhos como burocracia, judiciário, polícia,
exército, a fim de garantir a manutenção da ordem nos moldes mais favoráveis à
classe dominante.
O uso de tal recurso
serve tanto para reprimir como para desestimular atos de insubordinação e
insurgência por parte da classe dominada, dando certa solidez ao domínio “dos
de cima” sobre “os de baixo”. Por isso, a classe dominante recorre sempre a ele,
variando, segundo as circunstâncias, somente as formas e a intensidade de seu
uso.
Nisso assentamos a afirmação de que a
“política da militarização” é uma das formas que o uso da violência assume nas
relações de domínio e cuja intensidade varia segundo as circunstâncias. Importa
melhor explicar essa parte última.
A política da
militarização é uma constante nas relações de domínio. Como um dos recursos da
ditadura, ela coexiste com os elementos da hegemonia, pois, como dissemos
alhures, ditadura e hegemonia formam um par tenso e complementar. Mas, em
tempos ordinários, é usada em baixa intensidade, pontualmente, para reprimir
uma greve ou manifestação, para desestimular revoltosos ou coisa que o valha.
Apenas em tempos de
instabilidade ela é usada em grande intensidade, desabridamente. Em momentos
assim, dependendo da força que ameaça o domínio dos de cima, a política da
militarização pode ceder espaço à “militarização da política”. É quando a
ditadura pode deixar de ser um apenas um meio
de domínio e se tornar uma forma de governo.
Por paradoxal que possa
parecer, nesse caso, o uso da força é sinal de fraqueza. Para dizer com o
grande poeta do Rock Rural, nessas circunstâncias, “Toda força bruta representa
nada mais do que um sintoma de fraqueza” (Zé Geraldo).
Em condição assim, em que
os elementos hegemônicos (consenso, convencimento etc.) perdem espaço para os
elementos coativos (coerção, violência etc.), a classe dominante só consegue
manter a ordem - ou pelo menos se lança em tal empresa, pois não é certo que
ela o consiga - desprezando as aparências democráticas em que se oculta seu
domínio, agora desnudo por força das circunstâncias.
Isto posto, voltemos à
realidade brasileira. Desde 2013, ficou clara a intenção de a classe dominante
tomar do PT a função de representar e efetivar seus interesses. Em 2016, deu um
golpe. Tomou a presidência de Dilma. Passou a implementar por si mesma, em
doses cavalares, aquilo que o PT administrava com relativa moderação.
Todavia, por desgastadas
que estivessem as forças petistas, aquelas que as sucederam na condução da
política não conseguiram apoio popular, mesmo contando com o apoio massivo da
grande imprensa e do judiciário que, quando não as apoia ativamente, pelo
menos, não lhes cria obstáculo.
Ante a insuficiência dos
meios hegemônicos, resta-lhes recorrer aos ditatoriais. Eis que, assim,
chegamos ao decreto de intervenção militar no Rio de Janeiro. Eis que, assim,
uns personagens citados naquele célebre áudio de Jucá, enfim, aparecem na cena
do golpe (“grande acordo”, era como Jucá dizia no áudio). O congresso já havia
aparecido. O judiciário também. Agora foi a vez dos militares. E veio a
intervenção no Rio de Janeiro.
É óbvio que para entender
a intervenção no Rio é preciso considerar outros fatores. Entre eles, destaco: o
desastre dos governos local e municipal dali (Rio); a criminalidade, a
violência e a insegurança reinantes, ali como noutras partes do país; a inabilidade
política e a irresponsabilidade de Temer e consortes; a tentativa de minar a
força eleitoral de Bolsonaro (que vem figurando em segundo lugar em diversas
pesquisas de intenção de voto para presidente), “roubando seu discurso”,
ocupando seu reduto eleitoral (Rio), jogando com o reacionarismo de seus
eleitores.
Mostrando os interesses
políticos por trás da intervenção, Temer disse que ela foi “uma jogada de
mestre”. Como era de esperar, ele não tem ideia do que faz. Em verdade, a
intervenção pode ter sido um passo bastante perigoso, marcando a transição da
política da militarização para a militarização da política. Não é fácil dar um
passo desses e voltar atrás depois, como se nada tivesse acontecido.
Os militares aceitarão
perder, sem mais nem menos, os espaços e a visibilidade que ganharam? Difícil.
Em caso de suspenderem a intervenção, aceitarão que coloquem em suas costas a
culpa pelo fracasso? Impossível.
Ademais, cumpre
considerar os efeitos disso para a população. Um representante dos militares já
disse que precisam atuar sem medo de uma nova Comissão da verdade. Isso
explicita seus intentos. Pretendem - pelo menos, uns setores deles - atuar
livremente, sem medo de investigação. Isso coloca em risco bandidos e
não-bandidos.
Agora, recentemente,
ocorreu a execução de Marielle Franco (vereadora do Psol) e de Anderson Gomes
seu motorista. Ela era uma voz forte e combativa na denúncia da desregrada
atuação policial no Rio. Não são poucos os que têm levantado a hipótese de que
há envolvimento da polícia em sua execução.
Em protesto contra o
assassinato da vereadora e de seu motorista, manifestações ocorreram em
diversas partes do país. E imprensa internacional repercutiu de modo bastante
negativo a notícia. Como sempre, a direita e a bancada da bala - seu braço
político-parlamentar - reagiu, acusando e debochando dos que “defendem
bandidos”.
Certamente,
o fato há de abalar a já pouca credibilidade de Temer e seu governo. Mas o
problema não é só esse. Isso aumentará ainda mais a instabilidade política do
país. Os conflitos tendem a se acirrar ainda mais, ganhando contornos e traços
mais explosivos, violentos.
Num país em que a
repressão a grevistas e manifestantes está se tornando comum, em que o
assassinato de ativistas políticos e defensores de direitos é rotina e é até
comemorado em redes sociais, isso não pode ser coisa boa. Carente de
legitimidade suficiente para fazer seus interesses prevalecerem
consensualmente, a classe dominante recorre destrambelhadamente à violência.
A cidadania ativa dos que
questionam é transformada em crime. A repressão - e até as execuções - deixa de
ser pontual e passa a ser ostensiva, desabrida. Já não há preocupação sequer
com os elementos formais da democracia. Da violência nas ruas à tomada da
presidência de Dilma é o que vemos.
A “judicialização da
política”, que já representava, por si só, um golpe em nossa frágil democracia,
já não bastava. Era preciso mais. A simples política da militarização também já
não era suficiente. Era preciso mais. Insegura de seu domínio, a classe dominante,
atabalhoada, recorre ao uso da violência e o faz de modo cada vez mais
intensivo e extensivo.
A nosso ver, os sinais de
que estamos transitando da política da militarização para a militarização da
política são mais que claros. Resta saber até onde iremos. Em cenário como esse,
aquilo que Temer chamou “jogada de mestre” pode se transformar num suicídio
político. O perigo de os homens de farda
sucederem os homens de terno não é remoto.
[1]
Cientista social, professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus
Cruzeiro do Sul, onde coordena os projetos de pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia e Miséria Política no Brasil. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT: 2014) e Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa
fascinante, a tragédia facínora (no prelo). E-mail:
israelpolitica@gmail.com
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