domingo, 1 de abril de 2018

Aquém e além da lulolatria - para uma retomada consciente das lutas de classes no Brasil


           Israel Souza[1]
            Como fora previsto por muitos, a condenação do ex-presidente Lula foi mantida em segunda instância. Não apenas isso. Arredondando a conta, sua pena foi aumentada de 9 para 12 anos. A justiça determinou, ainda, a apreensão de seu passaporte, impedindo-o de viajar ao exterior. Esse é um fato carregado de grande constrangimento moral para o ex-presidente, além de limitar o eco de sua voz fora do país.
Pelo ângulo das lutas de classes, esse quadro sinaliza que a classe dominante - ora centrando fogo em Lula, mas mirando muito mais - não há de parar por aí. Mantidas as coisas como estão, tudo indica que a condenação será mantida em última instância e que, como candidato, Lula estará fora da próxima disputa eleitoral, pelo menos.
Por outro lado, é mais que razoável afirmar que dificilmente Lula conseguirá transferir, in totus, seus votos e força política a outro candidato de sua escolha. As eleições de Dilma e seus governos são exemplares a este respeito. Alimentada ao longo de décadas com um misto de desespero e empáfia, a lulolatria, agora sem Lula no páreo, de força, virou fraqueza. Neste panteão de um só deus, não há outro a quem dirigir preces e em quem depositar esperanças. Por isso, acredito eu, ao mostrar a possibilidade de outras tantas, a obstrução desta via pode ser salutar.      
Mais até do que no momento do impedimento de Dilma, agora o próprio Lula e o PT sentem os impactos negativos de terem cooptado lideranças, domesticado movimentos sociais e deseducado as massas para a luta política. Com efeito, mesmo neste momento em que retomam certo radicalismo para garantir sua sobrevivência é possível constatar a manipulação das massas e a concepção estreita de política com que lidam.
É o que se verifica em seus slogans (recuso-me a tratar tais como palavras de ordem), como, por exemplo, “Eleições sem Lula é fraude”, “Em defesa da democracia e de Lula”, “Com Lula e com o povo até a vitória em outubro”, “Lula vale a luta” etc.
Vê-se que tudo se passa como a se a democracia - e mesmo a política - fosse eleições e que estas só teriam sentido e legitimidade se se pudesse votar em Lula, sol que põe tudo o mais a orbitar em torno de si, deus, princípio e fim.
Ciente do petismo e do antipetismo que grassam nesses dias, importa frisar que não se trata aqui de engrossar o coro dos contentes com a condenação do ex-presidente, o coro da direita tradicional e dos fascistas de plantão.
Sem ignorar o mérito jurídico da questão mas também sem me circunscrever a ele como a círculo mágico, é mais que patente a dimensão política de seu processo e condenação - como patente ficara, antes, a dimensão política do impedimento de Dilma. Num caso e noutro, à luz das lutas de classes, direito e política se con-fundem, tornando impossível uma distinção clara e inequívoca entre ambos. No âmbito desta con-fusão, coube à força o peso decisório.
O que está em jogo é mais que o Lula. É a esquerda. É a Constituição que, ainda que de maneira um tanto simbólica, destaca a solidariedade como elemento indispensável da cidadania. É o ideal de justiça social. É a existência e a legitimidade de políticas sociais, substantivas, universais.  É a cidadania ativa como meio legítimo e eficaz de indicar e decidir os rumos do país. É tudo isso e muito mais. Inegavelmente.   
Neste sentido, é imperativo denunciar e combater, por todos os meios necessários, as injustiças que Lula sofreu e possa sofrer. E, exatamente por estar em jogo mais que o ex-presidente, isso terá que ser com respeito e solidariedade. Jamais como veneração. Idolatria, não!
Assim, é igualmente importante que seja explicitado e criticado contundentemente o papel que Lula e seu grupo desempenhou no processo que nos trouxe aqui. Suas opções, alianças e concessões, sobretudo. Eles não são vítimas inocentes.
Em verdade, será impossível valorizar seus acertos sem a capacidade de distingui-los dos erros. Afinal, como ignorar que a busca da governabilidade e a crença na conciliação de classes contribuíram enormemente para isso tudo? Como esquecer que Dilma, já sentindo o cerco se fechar contra ela, optou por continuar propondo contrarreformas e fazendo concessões perigosas aos golpistas, em vez de se aproximar das forças populares?
Em tal tarefa, é fundamental romper com o maniqueísmo que lulistas e consortes ajudaram a consolidar. Falo daquele diapasão que usam para tudo afinar segundo as diretivas petistas. Aqueles que desafinam e manifestam críticas, por justas que sejam, são classificados como direitistas, fascistas[2].
Lamentavelmente, esse foi o complemento petista ao maniqueísmo que a direita tradicional criou, tratando pejorativamente como petistas todos aqueles que, pertencendo ou não ao PT, lutam por justiça social e, no amplo horizonte histórico, pela emancipação humana.
Um e outo grupo lançam desses maniqueísmos a fim de se blindar das críticas e deslegitimar, com suas respectivas críticas e bandeiras, os que a eles não se vergam.  
Os desafios que se impõem à classe trabalhadora são muitos e grandes. Para fazer referência a Gramsci, digo que, para enfrentá-los adequadamente, é necessário pensar a partir da grande política, das lutas de classes, das transformações econômico-político-sociais, da revolução, e não apenas da pequena política, das lutas partidárias, dos messias, das eleições, das reformas...
Em todo o mundo, os desdobramentos da crise estrutural do capital mostram quão pernicioso é o fetichismo em torno da democracia e dos partidos. Os tempos são outros. Até as liberdades formais estão sendo suprimidas, sistematicamente.
O Brasil não foge à regra neste cenário de exceção. Aqui, os ataques às formalidades e procedimentalidades da democracia e do direito denunciam a falência das alternativas messiânicas, partidárias e eleitoreiras. O Estado democrático de direito mostra, explicitamente, sua natureza classista. E, como tal, ela é antidemocrática e de direita!    
Aos que nunca idolatraram Lula - símbolo da luta social, concordemos ou não -, sugiro, que aí se detenham, que fiquem aquém disso. Busquem outros caminhos e práticas. Aos que o idolatram, recomendo, é hora de ver, por trás do ídolo/mito, o homem e, mais que o homem, as classes.
             


[1] Cientista político, professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul, onde coordena os projetos de pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia e Miséria Política no Brasil. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT: 2014) e Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédia facínora (no prelo). E-mail: israelpolitica@gmail.com
[2] Eu mesmo já fui chamado de fascista porque me recusei a participar de um evento coordenado por forças petistas. Como de costume por essas bandas - creio que em outras também -, embora tratasse de um tema relevante, o evento fora organizado como palanque para um parlamentar que, sempre que requisitado pelo partido, votava contra os trabalhadores.

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