Israel Souza[1]
Como
fora previsto por muitos, a condenação do ex-presidente Lula foi mantida em
segunda instância. Não apenas isso. Arredondando a conta, sua pena foi
aumentada de 9 para 12 anos. A justiça determinou, ainda, a apreensão de seu
passaporte, impedindo-o de viajar ao exterior. Esse é um fato carregado de
grande constrangimento moral para o ex-presidente, além de limitar o eco de sua
voz fora do país.
Pelo ângulo das lutas de
classes, esse quadro sinaliza que a classe dominante - ora centrando fogo em
Lula, mas mirando muito mais - não há de parar por aí. Mantidas as coisas como
estão, tudo indica que a condenação será mantida em última instância e que,
como candidato, Lula estará fora da próxima disputa eleitoral, pelo menos.
Por outro lado, é mais que
razoável afirmar que dificilmente Lula conseguirá transferir, in totus, seus votos e força política a
outro candidato de sua escolha. As eleições de Dilma e seus governos são
exemplares a este respeito. Alimentada ao longo de décadas com um misto de
desespero e empáfia, a lulolatria,
agora sem Lula no páreo, de força, virou fraqueza. Neste panteão de um só deus,
não há outro a quem dirigir preces e em quem depositar esperanças. Por isso,
acredito eu, ao mostrar a possibilidade de outras tantas, a obstrução desta via
pode ser salutar.
Mais até do que no momento do
impedimento de Dilma, agora o próprio Lula e o PT sentem os impactos negativos
de terem cooptado lideranças, domesticado movimentos sociais e deseducado as
massas para a luta política. Com efeito, mesmo neste momento em que retomam
certo radicalismo para garantir sua sobrevivência é possível constatar a
manipulação das massas e a concepção estreita de política com que lidam.
É o que se verifica em seus slogans (recuso-me a tratar tais como
palavras de ordem), como, por exemplo, “Eleições sem Lula é fraude”, “Em defesa
da democracia e de Lula”, “Com Lula e com o povo até a vitória em outubro”,
“Lula vale a luta” etc.
Vê-se que tudo se passa como a
se a democracia - e mesmo a política - fosse eleições e que estas só teriam
sentido e legitimidade se se pudesse votar em Lula, sol que põe tudo o mais a
orbitar em torno de si, deus, princípio e fim.
Ciente do petismo e do
antipetismo que grassam nesses dias, importa frisar que não se trata aqui de
engrossar o coro dos contentes com a condenação do ex-presidente, o coro da
direita tradicional e dos fascistas de plantão.
Sem ignorar o mérito jurídico
da questão mas também sem me circunscrever a ele como a círculo mágico, é mais
que patente a dimensão política de seu processo e condenação - como patente
ficara, antes, a dimensão política do impedimento de Dilma. Num caso e noutro,
à luz das lutas de classes, direito e política se con-fundem, tornando impossível uma distinção clara e inequívoca
entre ambos. No âmbito desta con-fusão,
coube à força o peso decisório.
O que está em jogo é mais que
o Lula. É a esquerda. É a Constituição que, ainda que de maneira um tanto
simbólica, destaca a solidariedade como elemento indispensável da cidadania. É
o ideal de justiça social. É a existência e a legitimidade de políticas sociais,
substantivas, universais. É a cidadania
ativa como meio legítimo e eficaz de indicar e decidir os rumos do país. É tudo
isso e muito mais. Inegavelmente.
Neste sentido, é imperativo
denunciar e combater, por todos os meios necessários, as injustiças que Lula
sofreu e possa sofrer. E, exatamente por estar em jogo mais que o
ex-presidente, isso terá que ser com respeito e solidariedade. Jamais como
veneração. Idolatria, não!
Assim, é igualmente importante
que seja explicitado e criticado contundentemente o papel que Lula e seu grupo
desempenhou no processo que nos trouxe aqui. Suas opções, alianças e
concessões, sobretudo. Eles não são vítimas inocentes.
Em verdade, será impossível
valorizar seus acertos sem a capacidade de distingui-los dos erros. Afinal, como
ignorar que a busca da governabilidade e a crença na conciliação de classes contribuíram
enormemente para isso tudo? Como esquecer que Dilma, já sentindo o cerco se
fechar contra ela, optou por continuar propondo contrarreformas e fazendo
concessões perigosas aos golpistas, em vez de se aproximar das forças
populares?
Em tal tarefa, é fundamental
romper com o maniqueísmo que lulistas e consortes ajudaram a consolidar. Falo
daquele diapasão que usam para tudo afinar segundo as diretivas petistas.
Aqueles que desafinam e manifestam críticas, por justas que sejam, são
classificados como direitistas, fascistas[2].
Lamentavelmente, esse foi o
complemento petista ao maniqueísmo que a direita tradicional criou, tratando
pejorativamente como petistas todos aqueles que, pertencendo ou não ao PT,
lutam por justiça social e, no amplo horizonte histórico, pela emancipação
humana.
Um e outo grupo lançam desses
maniqueísmos a fim de se blindar das críticas e deslegitimar, com suas
respectivas críticas e bandeiras, os que a eles não se vergam.
Os desafios que se impõem à
classe trabalhadora são muitos e grandes. Para fazer referência a Gramsci, digo
que, para enfrentá-los adequadamente, é necessário pensar a partir da grande
política, das lutas de classes, das transformações econômico-político-sociais,
da revolução, e não apenas da pequena política, das lutas partidárias, dos
messias, das eleições, das reformas...
Em todo o mundo, os
desdobramentos da crise estrutural do capital mostram quão pernicioso é o
fetichismo em torno da democracia e dos partidos. Os tempos são outros. Até as
liberdades formais estão sendo suprimidas, sistematicamente.
O Brasil não foge à regra
neste cenário de exceção. Aqui, os ataques às formalidades e
procedimentalidades da democracia e do direito denunciam a falência das
alternativas messiânicas, partidárias e eleitoreiras. O Estado democrático de
direito mostra, explicitamente, sua natureza classista. E, como tal, ela é antidemocrática
e de direita!
Aos que nunca idolatraram Lula
- símbolo da luta social, concordemos ou não -, sugiro, que aí se detenham, que
fiquem aquém disso. Busquem outros caminhos e práticas. Aos que o idolatram,
recomendo, é hora de ver, por trás do ídolo/mito, o homem e, mais que o homem,
as classes.
[1]
Cientista político, professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus
Cruzeiro do Sul, onde coordena os projetos de pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia e Miséria Política no Brasil. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT: 2014) e Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa
fascinante, a tragédia facínora (no prelo). E-mail: israelpolitica@gmail.com
[2]
Eu mesmo já fui chamado de fascista porque me recusei a participar de um evento
coordenado por forças petistas. Como de costume por essas bandas - creio que em
outras também -, embora tratasse de um tema relevante, o evento fora organizado
como palanque para um parlamentar que, sempre que requisitado pelo partido,
votava contra os trabalhadores.
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