Para
as forças democráticas, a última semana de maio foi um marco. Confirmando uma
série de outras, pesquisa Datafolha mostrou um Bolsonaro desidratado: apoio
menor, rejeição maior. Ademais, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, o
inquérito das fake news atingiu em
cheio uma de suas mais importantes bases de apoio, e isso sem nem mesmo ter chegado
ao fim. Os estragos deste inquérito são de uma potencialidade extraordinária,
explosiva mesmo, já que envolve financiadores privados (empresários), políticos
e operacionalizadores.
Vê-se, assim, que não
foi sem razão que, mais uma vez, Eduardo Bolsonaro falou em ruptura com a ordem
democrática. Em parte isso é blefe ou, no mínimo, um desejo extravagante.
Sabemos que algo assim não é unanimidade entre as forças armadas. Em parte,
porém, é estratégia política cujo intento é duplo. Por um lado, pretendem
amedrontar os adversários. Por outro, inflamam sua base de apoio minguante mas
radicalizada.
Parte dessa estratégia
pode ser observada nos símbolos usados nesses últimos dias. Em transmissões ao
vivo pelas redes sociais, Bolsonaro, membros do governo e alguns de seus
apoiadores tomaram leite, um gesto símbolo dos nazistas e de sua ideologia ariana.
De sua parte, Sara Winter, líder dos “300” e uma das implicadas no inquérito
das fake news, liderou um ato em que os participantes usavam máscaras e levavam
tochas, numa estética toda referenciada em movimentos supremacistas da Ku Klux
Klan (KKK) e dos nazistas.
Alguém pode dizer que
tudo isso é apenas uma forma de confundir e chamar a atenção. Concordamos, em
parte. Acrescentamos, porém, que havia muitas outras formas de chamar a atenção
e confundir. Essas não foram escolhidas ao acaso. O fato de, a mando de
Bolsonaro, o ministro da justiça ter entrado com habeas corpus para proteger Sara Winter de possível prisão
corrobora nosso ponto de vista e revela o quanto o governo se sente
representado nesse tipo de manifestação e ideologia.
Com efeito, ao observador
relativamente informado sobre o fascismo, sua retórica e símbolos, muito antes
disso, o caráter fascista do atual governo já era certo. Para esses
observadores (entre os quais, está este escriba), então, o que ocorre agora não
é uma virada, mas tão somente as explicitação e radicalização de traços já
perceptíveis desde o início.
Para infelicidade do
governo e de seus apoiadores, a resistência começa a ganhar relevante nível de
consistência e organização, como ainda não havia alcançado até aqui. Prova
disso são, por exemplo, os movimentos Somos
70% e Somos Democracia. Digna de
nota nesse cenário foi a atuação das torcidas organizadas que colocaram na
pauta a defesa da democracia e a luta antifascista, com uma contundência e
habilidade que a oposição partidária-parlamentar não conseguira.
Em primeiro lugar,
cumpre destacar que, até aqui, apenas os apoiadores do governo vinham se
manifestando nas ruas. Este foi o segundo final de semana consecutivo que as
torcidas ganharam as ruas e o fizeram em maior quantidade que os apoiadores de
Bolsonaro. Em segundo lugar, as manifestações das torcidas se dão em defesa da
democracia, e não em defesa de algum líder ou partido. Isso permite a confluência
de forças bastante diversas entre si, a exemplo das próprias torcidas de times
historicamente rivais.
Em terceiro lugar, esse
movimento se coloca, não só em defesa da democracia, mas também contra o
fascismo, definindo-se como um movimento antifascista. Eis algo que não
poderemos subestimar. Foi da soma dos movimentos Somos 70% e Somos Democracia
que surgiu o Somos 70% Antifascistas
que, logo imediatamente, resultou em outros tantos movimentos, como Historiadores Antifascistas, Professores e Professoras Antifascistas,
Assistentes Sociais Antifascistas,
Advogados Antifascistas, Jornalistas
Antifascistas e etc. Categorias e
grupos vários reverberam assim suas insatisfações.
Em quarto lugar, ao
lado das manifestações do governo e seus apoiadores, esse movimento forçou a
imprensa a, enfim, tratar de maneira clara e com certa seriedade o tema do
fascismo. Por seu turno, o ministro Celso de Melo comparou o Brasil de hoje com
a Alemanha de Hitler. No Parlamento, no Judiciário, na imprensa, nas ruas, nas
redes sociais. O fascismo se tornou tema incontornável para compreender
histórica, política e sociologicamente o Brasil de hoje.
Antes, definir
Bolsonaro e seus apoiadores como fascistas era entendido, maiormente, apenas
como uma maneira pejorativa de tratá-los, algo como um xingamento, coisa
descabida, extemporânea. Alguns até faziam troça, emendando, após o “fascista”,
palavras como “ciclista”, “taxista”, “motorista” e por aí vai. Poucos entendiam
o perigo. Todavia, agora, muitos se dão conta de quão pertinente e acertado é o
tratamento.
Entre as muitas coisas
que isso permite inferir, está a de que, entre os 70%, muitos acordaram para o fascismo, reconhecendo o perigo real
que ele representa. Contudo, resta ainda acordarem (no duplo sentido de despertar e de fazer acordo) contra o
fascismo. Mesmo com todas as divergências presentes no seio desses 70%, é
importante conseguirmos atuar organizada e organicamente, de um modo tal que
consigamos reconquistar, nas ruas como nas redes, cada palmo perdido para o
fascismo.
Sendo, numericamente,
maiores, falta-nos ainda ser os melhores, atentando sempre para o que diz
Mariátegui a esse respeito: “Os melhores prevalecem quando sabem ser
verdadeiramente os melhores”.
[1]
Cientista Social e Mestre em
Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência
(PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa
fascinante, a tragédia facínora (EDIFAC, 2018) e E a carne se fez verbo... (EAC Editor, 2020). Atualmente é
professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul,
onde coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia
(TRATEPAM).
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