quarta-feira, 3 de junho de 2020

ACORDAR PARA E CONTRA O FASCISMO


Israel Souza[1]
           
            Para as forças democráticas, a última semana de maio foi um marco. Confirmando uma série de outras, pesquisa Datafolha mostrou um Bolsonaro desidratado: apoio menor, rejeição maior. Ademais, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, o inquérito das fake news atingiu em cheio uma de suas mais importantes bases de apoio, e isso sem nem mesmo ter chegado ao fim. Os estragos deste inquérito são de uma potencialidade extraordinária, explosiva mesmo, já que envolve financiadores privados (empresários), políticos e operacionalizadores.
Vê-se, assim, que não foi sem razão que, mais uma vez, Eduardo Bolsonaro falou em ruptura com a ordem democrática. Em parte isso é blefe ou, no mínimo, um desejo extravagante. Sabemos que algo assim não é unanimidade entre as forças armadas. Em parte, porém, é estratégia política cujo intento é duplo. Por um lado, pretendem amedrontar os adversários. Por outro, inflamam sua base de apoio minguante mas radicalizada.
Parte dessa estratégia pode ser observada nos símbolos usados nesses últimos dias. Em transmissões ao vivo pelas redes sociais, Bolsonaro, membros do governo e alguns de seus apoiadores tomaram leite, um gesto símbolo dos nazistas e de sua ideologia ariana. De sua parte, Sara Winter, líder dos “300” e uma das implicadas no inquérito das fake news, liderou um ato em que os participantes usavam máscaras e levavam tochas, numa estética toda referenciada em movimentos supremacistas da Ku Klux Klan (KKK) e dos nazistas.
Alguém pode dizer que tudo isso é apenas uma forma de confundir e chamar a atenção. Concordamos, em parte. Acrescentamos, porém, que havia muitas outras formas de chamar a atenção e confundir. Essas não foram escolhidas ao acaso. O fato de, a mando de Bolsonaro, o ministro da justiça ter entrado com habeas corpus para proteger Sara Winter de possível prisão corrobora nosso ponto de vista e revela o quanto o governo se sente representado nesse tipo de manifestação e ideologia.   
Com efeito, ao observador relativamente informado sobre o fascismo, sua retórica e símbolos, muito antes disso, o caráter fascista do atual governo já era certo. Para esses observadores (entre os quais, está este escriba), então, o que ocorre agora não é uma virada, mas tão somente as explicitação e radicalização de traços já perceptíveis desde o início.
Para infelicidade do governo e de seus apoiadores, a resistência começa a ganhar relevante nível de consistência e organização, como ainda não havia alcançado até aqui. Prova disso são, por exemplo, os movimentos Somos 70% e Somos Democracia. Digna de nota nesse cenário foi a atuação das torcidas organizadas que colocaram na pauta a defesa da democracia e a luta antifascista, com uma contundência e habilidade que a oposição partidária-parlamentar não conseguira.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que, até aqui, apenas os apoiadores do governo vinham se manifestando nas ruas. Este foi o segundo final de semana consecutivo que as torcidas ganharam as ruas e o fizeram em maior quantidade que os apoiadores de Bolsonaro. Em segundo lugar, as manifestações das torcidas se dão em defesa da democracia, e não em defesa de algum líder ou partido. Isso permite a confluência de forças bastante diversas entre si, a exemplo das próprias torcidas de times historicamente rivais.
Em terceiro lugar, esse movimento se coloca, não só em defesa da democracia, mas também contra o fascismo, definindo-se como um movimento antifascista. Eis algo que não poderemos subestimar. Foi da soma dos movimentos Somos 70% e Somos Democracia que surgiu o Somos 70% Antifascistas que, logo imediatamente, resultou em outros tantos movimentos, como Historiadores Antifascistas, Professores e Professoras Antifascistas, Assistentes Sociais Antifascistas, Advogados Antifascistas, Jornalistas Antifascistas e etc. Categorias e grupos vários reverberam assim suas insatisfações.
Em quarto lugar, ao lado das manifestações do governo e seus apoiadores, esse movimento forçou a imprensa a, enfim, tratar de maneira clara e com certa seriedade o tema do fascismo. Por seu turno, o ministro Celso de Melo comparou o Brasil de hoje com a Alemanha de Hitler. No Parlamento, no Judiciário, na imprensa, nas ruas, nas redes sociais. O fascismo se tornou tema incontornável para compreender histórica, política e sociologicamente o Brasil de hoje.  
Antes, definir Bolsonaro e seus apoiadores como fascistas era entendido, maiormente, apenas como uma maneira pejorativa de tratá-los, algo como um xingamento, coisa descabida, extemporânea. Alguns até faziam troça, emendando, após o “fascista”, palavras como “ciclista”, “taxista”, “motorista” e por aí vai. Poucos entendiam o perigo. Todavia, agora, muitos se dão conta de quão pertinente e acertado é o tratamento.
Entre as muitas coisas que isso permite inferir, está a de que, entre os 70%, muitos acordaram para o fascismo, reconhecendo o perigo real que ele representa. Contudo, resta ainda acordarem (no duplo sentido de despertar e de fazer acordo) contra o fascismo. Mesmo com todas as divergências presentes no seio desses 70%, é importante conseguirmos atuar organizada e organicamente, de um modo tal que consigamos reconquistar, nas ruas como nas redes, cada palmo perdido para o fascismo.
Sendo, numericamente, maiores, falta-nos ainda ser os melhores, atentando sempre para o que diz Mariátegui a esse respeito: “Os melhores prevalecem quando sabem ser verdadeiramente os melhores”.
             


[1] Cientista Social e Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédia facínora (EDIFAC, 2018) e E a carne se fez verbo... (EAC Editor, 2020). Atualmente é professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul, onde coordena o Grupo de Pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia (TRATEPAM).

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