Quem tiver interesse em adquirir na versão e-book, entrar contato com o autor: israelpolitica@gmail.com
APRESENTAÇÃO
Como
concebemos, a política da antipolítica
é uma ação eminentemente política que, no entanto, não se assume como tal. Em
tempos de crise como o que vivemos, em que a própria política e os que nela
tomam parte são olhados com desconfiança e, não raro, com hostilidade, é algo compreensível.
Trata-se de uma ação que simula caráter apolítico
(antipolítico, impolítico ou contrapolítico)
com o fito de dissimular seu caráter político.
Para usar versos de
Lenine, podemos dizer que se trata de uma tentativa de “virar o jogo” e
“transformar a perda” em “recompensa”[1].
De modo um tanto engenhoso, cumpre reconhecer, almeja-se transformar o
descrédito da política em crédito político. No nível do aparente, a negação da
política, sua desmoralização e aviltamento. Noutro nível, o mais efetivo das
relações sociais, sua afirmação, com nada menos que um viés autoritário. Por um
lado, a farsa. Por outro, a força. A política da antipolítica é um composto de
ambas.
Dedicada a dar um
contributo à compreensão do Brasil de nossos dias, a reflexão que segue está
dividida em dois volumes, dos quais este é o primeiro. Neste Volume I, buscamos
destacar mais a dimensão farsesca[2] da política da antipolítica. Através da
abordagem de temas como o projeto Escola sem partido (ESP), o negacionismo e o
racismo, o que fazemos é mostrar que a política está presente mesmo onde alguns
a dizem ausente, destacando os interesses que subjazem ao pretenso apoliticismo
e suas implicações.
Mesmo num microcosmos
social, como é a escola, veremos que a política da antipolítica do atual
governo assume formas altamente autocráticas, irracionais, reacionárias e com
traços fortemente militarizados. E, mesmo quando se vale dos elementos e
aparelhos diretivo-hegemônicos, dá a eles a marca da coerção e da beligerância.
Seus intentos de aumentar o número de escolas civil-militares pelo país, em
detrimento das escolas civis, é expressão disso. Seu consenso é dissensual.
No Volume II (A política da antipolítica: militarização e
ameaças à democracia), voltamos nossa atenção para a dimensão policialesca do objeto de nossa reflexão. Nos passos de Gramsci,
entendemos que toda política tem em si um substrato militar. Como o autor
italiano, compreendemos que toda ordem, para ser mantida, necessita conjugar
num relativo equilíbrio consenso e coerção (direção e dominação, hegemonia e ditadura).
É a proeminência dos
mecanismos coercitivos que dizemos marcar a transição da política da militarização (onde a violência e a força são usadas cotidianamente,
mas de modo pontual) para a militarização
da política, radicalizando o estado de exceção a que estamos historicamente
submetidos. Dada a escala crescente com que a violência é requerida atualmente
nas relações sociais, a política vai assumindo paulatinamente feições de guerra.
Parece mesmo que, nesse contexto de crescente violência, é a política que figura
como uma continuação da guerra por outros meios.
A situação em que nos
encontramos é moldada pelo encontro e o mútuo fortalecimento de duas tendências
de militarização. Uma mais geral e outra, nacional. Jogando por terra o pacto
social representado pelo Estado de Bem-estar Social, o neoliberalismo, por si
só, já implica a militarização das relações sociais, a substituição da política de conciliação de classes pela guerra de classes.
Ora, não é sem motivos
que o Chile de Pinochet tenha se tornado o primeiro grande laboratório do
neoliberalismo. Em perfeita sintonia com sua formação de “Chicago boy”, Paulo
Guedes (ministro da Economia do governo Bolsonaro) dá provas da permanência
dessa afinidade entre neoliberalismo e militarização e do vigor que ela goza em
nosso meio. Foi ele quem disse, diante da possibilidade de protestos de
oposição às (contra)reformas: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5.”
No Brasil, além da
adoção da agenda de austeridade, confirmada com graus variados por governos de colorações
partidárias as mais diversas, esta tendência mais geral de militarização é
fortalecida pelo militarismo do atual governo federal. Daí, no Volume II, nossa
atenção se voltar para a concepção e as práticas políticas dos militares, da
Polícia Militar e do Exército. Maiormente alinhados ao atual governo, os
militares jogam importante papel na atual conjuntura.
Amplamente formado por
militares e sustentado por grupos entre conservadores e reacionários, o grupo
político atualmente dominante pensa e pratica a política em chave
bélico-militar, agregando um colorido verde-oliva à militarização da política e
das relações sociais desencadeada pelo neoliberalismo. Em razão disso e diferentemente
do que ocorreu em outros governos, agora a militarização não se dá apenas
contra os de baixo. No momento, através de práticas legais e extralegais, ela
ganha maior dimensão e dramaticidade, sendo exercida de modo escancarado contra
adversários políticos, imprensa, organizações, formadores de opinião,
intelectuais etc.
Apresentando-se “contra
tudo o que está aí”, com nitidez ofuscante, o atual governo encarna e realça as
dimensões farsesca e policialesca da política da antipolítica. As mentiras e as
ameaças são igualmente armas suas[3].
Neste sentido, guardam profunda unidade frases de Bolsonaro como “Não existe
racismo no Brasil” e “Se tudo dependesse de mim, não viveríamos neste regime”
ou “Quem decide se um povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são as
suas Forças Armadas [...]. Se nós não reconhecermos o valor desses homens e
mulheres que estão lá, tudo pode mudar”.
Antes de passar
adiante, gostaríamos de chamar a atenção para um fator de grande importância. É
verdade que há certa complementaridade entre a militarização do neoliberalismo
e a do governo federal. Quanto menos social, mais policial é o Estado. Também é
certo que o governo se coloca como servo da classe dominante. Mas nem tudo é
harmonia entre eles. Em seu irracionalismo e trapalhadas, o governo enseja
fricções muitas entre ele e algumas frações da classe dominante. Isso está bem
claro para alguns, a exemplo do empresário que recentemente disse: “Entre
Bolsonaro e o demônio, eu voto no demônio”[4].
Mesmo Paulo Guedes e
Mourão já saíram em defesa da vacinação em massa como saída para a retomada das
atividades econômicas, coisa a que Bolsonaro e os grupos mais fiéis a ele vêm
se mostrando refratários. E se o mandatário continuar a insistir nesse e em outros
arroubos e irracionalismos, como a experiência nos permite supor que continue,
até quando a classe dominante quererá sustentá-lo na presidência? E caso queira
tirá-lo de lá, como agirão os militares: deixá-lo-ão cair para que continuem no
poder com Mourão ou tensionarão no sentido de um golpe desabrido, mandando
pelos ares a ordem jurídico-constitucional?
Seja como for, fato é
que, desde o fim da ditadura civil-militar, nossa frágil democracia nunca se
viu tão ameaçada, com reais chances de supressão.
Cada um
dos Volumes deste livro é formado por artigos que, em seu conjunto, visam a compor
um quadro da conjuntura política que ora atravessamos. Destes artigos, alguns
já foram publicados. Outros - a maioria, para falar a verdade - são inéditos.
Eles não estão distribuídos segundo a ordem cronológica em que foram escritos.
Em verdade, estão ordenados segundo os temas que abordam e como um complementa
e dá prosseguimento ao outro.
Concebida durante o
período pandêmico e da quarenta que então se impôs, a presente obra traz
explícita essa marca, fazendo referência a tal em passagens diversas, sempre de
acordo com a reflexão realizada em cada texto. Acreditamos que é importante
deixar esse registro dos dias que vivemos. Embora façamos assim, buscamos
sempre tratar de casos ou problemas relativamente pontuais à luz de mais ampla
compreensão, quer histórica, quer geográfica ou mesmo teórica. Por esse
caminho, perseguimos o objetivo de evitar os extremos da generalização vazia e
do empirismo tacanho, fechado em si mesmo.
Não fez parte de nossas
intenções tratar os temas até exauri-los. Nem poderíamos. Quisemos, isto sim,
apenas evidenciar alguns de seus traços e implicações, os que reputamos de
maior relevância. Quanto a isso, exemplar é o texto referente ao negacionismo na e da
pandemia (A “razão da desrazão” ou a
ordem por sob o caos: notas sobre o negacionismo).
Com o processo
pandêmico ainda em curso, sem perspectiva segura de quando terá termo, seria
impossível tratar do tema ao longo de todo esse período. Assim, tocou-nos tão somente
pôr em relevo, durante o período que a pesquisa cobriu, o que do fenômeno do
negacionismo mais se impunha às relações sociais e, por conseguinte, à nossa atenção.
Essa observação é válida para todos os textos aqui coligidos. Dessa maneira, tratamos
da “história imediata”, na qual estamos imersos, olhando para além dela.
Mais uma observação. Ao
longo da pesquisa, pudemos ver que a maior parte dos autores que falam da
antipolítica de Bolsonaro o fazem a partir de certa visão institucionalista
e/ou essencialista, como se fosse possível enclausurar a política em
instituições e atribuir a ela apenas ações virtuosas. Para eles, Bolsonaro
representa a antipolítica porque desrespeitoso e ameaçador às instituições, a
suas regras. De nossa parte, ancorados numa visão realista (ampla e complexa) da
política e dos conflitos que ao fim e ao cabo ela implica, entendemos que ela
se faz por dentro e por fora das instituições, com elas, sem elas e mesmo
contra elas. Atentar contra as instituições não é ato menos político do que submeter-se
a elas.
A bem da verdade, quanto
mais levado a sério, mais pueril nos parece tal institucionalismo. Embora
inegavelmente importantes, as instituições são nada mais que a coagulação da
correlação de forças (entre classes e grupos) de dado momento, podendo, por
isso, ruírem ou serem transformadas tão logo aquela correlação de forças sofra
mudanças. Para dizer de modo simples e direto: elas não são sagradas nem
eternas.
A esse respeito, é impossível
ignorar a força e a verdade das palavras de Marx e Engels em A ideologia alemã: “A atitude do burguês
para com as instituições de seu regime é como a atitude do judeu para com a
lei; ele as transgride sempre que possível em cada caso particular, mas quer
que todos os outros as observem” (MARX e ENGELS, 2007, p. 181)[5].
De maneira ainda mais acentuada, impossível ignorar que, sob o domínio do
capital, “tudo o que é sólido desmancha no ar” (MARX e ENGELS, 2006, p. 88)[6],
por sua dinâmica contínua de construção, destruição e reconstrução.
Dedico este livro a
“Dona Jacira”, meu solo mátrio; a Maria Beatriz cujo sorriso luminoso dissipa
qualquer desavisada penumbra; a Nayra Oliveira, “minha nega” de toda vida; a
todos os profissionais de saúde que, com verdadeiro compromisso em favor da
vida, se colocaram na linha de frente do combate à Covi-19; a todos os
sonhadores que inspiram e, tijolo por tijolo, com fé e luta vão pavimentando
caminhos e dando realidade a um mundo de paz, justiça e liberdade.
Por fim, cabe-me apenas
dizer: sou filho do meu tempo e deste chão em que firmo os pés e deito raízes.
Daqui, de uma localidade triplamente periférica[7],
falo do Brasil para o Brasil. A ciência não se me afigura como instrumento de
fuga da realidade social. Muito ao contrário. É através dela que procuro
compreender e tomar parte nos conflitos sociais que a conformam. Escrever na
primeira pessoa do plural[8] é,
a um só tempo, uma opção gramatical, epistêmica e política. Julgo que não
poderia fazer coisa diferente neste momento em que a luta de classes e grupos
vai assumindo, paulatinamente, feições de guerra e por isso funde-se, de
maneira dramática, à defesa da própria vida.
Israel Souza
07/03/2021
[1]
Os versos são da canção É o que me
interessa, composição de Lenine e Dudu falcão.
[2]
A dimensão farsesca da antipolítica diz respeito ao aspecto ideológico do
fenômeno. Como tal, de modo nenhum, ela exclui a existência de convicções
sinceras entre bolsonaristas. Não fosse assim, seria difícil explicar o fato de
uns tantos entre eles, desrespeitando as regras de isolamento social, se
exporem ao novo coronavírus. Como informam os meios de comunicação, muitos
foram a óbito. Isso é mais que farsa e ignorância. Há convicções sinceras nesse
meio.
[3]
Enquanto escrevemos estas palavras, a página de Aos fatos destaca que, em 794 dias como presidente, Bolsonaro deu
2547 declarações falsas ou distorcidas. São mais de 3 por dia. Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/.
Acesso em: 05 fev. 2021. A referida página faz esse levantamento diariamente.
[4]
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2021/03/05/a-volta-do-demonio-pesquisa-e-empresarios-indicam-fortalecimento-de-lula.htm.
Acesso em: 06 fev. 2021.
[5]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A
ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
[6]
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto
do partido comunista. São: Global, 2006.
[7]
Moro em Cruzeiro do Sul, periferia do estado do Acre, que é periferia da
Amazônia, que é, por sua vez, periferia do Brasil.
[8] Com a única exceção destes parágrafos últimos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário