sábado, 3 de julho de 2021

Apresentação do livro A política da antipolítica no Brasil (2 Volumes), recém-lançado

 Quem tiver interesse em adquirir na versão e-book, entrar contato com o autor: israelpolitica@gmail.com


APRESENTAÇÃO

 

            Como concebemos, a política da antipolítica é uma ação eminentemente política que, no entanto, não se assume como tal. Em tempos de crise como o que vivemos, em que a própria política e os que nela tomam parte são olhados com desconfiança e, não raro, com hostilidade, é algo compreensível. Trata-se de uma ação que simula caráter apolítico (antipolítico, impolítico ou contrapolítico) com o fito de dissimular seu caráter político.

Para usar versos de Lenine, podemos dizer que se trata de uma tentativa de “virar o jogo” e “transformar a perda” em “recompensa”[1]. De modo um tanto engenhoso, cumpre reconhecer, almeja-se transformar o descrédito da política em crédito político. No nível do aparente, a negação da política, sua desmoralização e aviltamento. Noutro nível, o mais efetivo das relações sociais, sua afirmação, com nada menos que um viés autoritário. Por um lado, a farsa. Por outro, a força. A política da antipolítica é um composto de ambas.

Dedicada a dar um contributo à compreensão do Brasil de nossos dias, a reflexão que segue está dividida em dois volumes, dos quais este é o primeiro. Neste Volume I, buscamos destacar mais a dimensão farsesca[2] da política da antipolítica. Através da abordagem de temas como o projeto Escola sem partido (ESP), o negacionismo e o racismo, o que fazemos é mostrar que a política está presente mesmo onde alguns a dizem ausente, destacando os interesses que subjazem ao pretenso apoliticismo e suas implicações.


Mas, já aqui, vai ficando clara sua dimensão policialesca (coercitiva, militarizada). Emblemático disso é, por exemplo, que Bolsonaro tenha perguntado a Ricardo Vélez - o primeiro Ministro da Educação em seu governo - se ele “teria faca nos dentes para combater a esquerda radical no Ministério?”, demonstrando cabalmente a natureza político-partidária e beligerante de seu apoliticismo.

Mesmo num microcosmos social, como é a escola, veremos que a política da antipolítica do atual governo assume formas altamente autocráticas, irracionais, reacionárias e com traços fortemente militarizados. E, mesmo quando se vale dos elementos e aparelhos diretivo-hegemônicos, dá a eles a marca da coerção e da beligerância. Seus intentos de aumentar o número de escolas civil-militares pelo país, em detrimento das escolas civis, é expressão disso. Seu consenso é dissensual.

No Volume II (A política da antipolítica: militarização e ameaças à democracia), voltamos nossa atenção para a dimensão policialesca do objeto de nossa reflexão. Nos passos de Gramsci, entendemos que toda política tem em si um substrato militar. Como o autor italiano, compreendemos que toda ordem, para ser mantida, necessita conjugar num relativo equilíbrio consenso e coerção (direção e dominação, hegemonia e ditadura).



Às vezes, contudo, quando os dominados despertam temor nos dominantes ou quando os interesses que estes acalentam não são atendidos a contento na atual configuração da ordem, o relativo equilíbrio é desfeito em detrimento dos mecanismos consensuais e em favor dos mecanismos coercitivos. Nestes casos, cabe mais proeminência a estes últimos.

É a proeminência dos mecanismos coercitivos que dizemos marcar a transição da política da militarização (onde a violência e a força são usadas cotidianamente, mas de modo pontual) para a militarização da política, radicalizando o estado de exceção a que estamos historicamente submetidos. Dada a escala crescente com que a violência é requerida atualmente nas relações sociais, a política vai assumindo paulatinamente feições de guerra. Parece mesmo que, nesse contexto de crescente violência, é a política que figura como uma continuação da guerra por outros meios.  

A situação em que nos encontramos é moldada pelo encontro e o mútuo fortalecimento de duas tendências de militarização. Uma mais geral e outra, nacional. Jogando por terra o pacto social representado pelo Estado de Bem-estar Social, o neoliberalismo, por si só, já implica a militarização das relações sociais, a substituição da política de conciliação de classes pela guerra de classes.

Ora, não é sem motivos que o Chile de Pinochet tenha se tornado o primeiro grande laboratório do neoliberalismo. Em perfeita sintonia com sua formação de “Chicago boy”, Paulo Guedes (ministro da Economia do governo Bolsonaro) dá provas da permanência dessa afinidade entre neoliberalismo e militarização e do vigor que ela goza em nosso meio. Foi ele quem disse, diante da possibilidade de protestos de oposição às (contra)reformas: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5.”

No Brasil, além da adoção da agenda de austeridade, confirmada com graus variados por governos de colorações partidárias as mais diversas, esta tendência mais geral de militarização é fortalecida pelo militarismo do atual governo federal. Daí, no Volume II, nossa atenção se voltar para a concepção e as práticas políticas dos militares, da Polícia Militar e do Exército. Maiormente alinhados ao atual governo, os militares jogam importante papel na atual conjuntura.

Amplamente formado por militares e sustentado por grupos entre conservadores e reacionários, o grupo político atualmente dominante pensa e pratica a política em chave bélico-militar, agregando um colorido verde-oliva à militarização da política e das relações sociais desencadeada pelo neoliberalismo. Em razão disso e diferentemente do que ocorreu em outros governos, agora a militarização não se dá apenas contra os de baixo. No momento, através de práticas legais e extralegais, ela ganha maior dimensão e dramaticidade, sendo exercida de modo escancarado contra adversários políticos, imprensa, organizações, formadores de opinião, intelectuais etc.

Apresentando-se “contra tudo o que está aí”, com nitidez ofuscante, o atual governo encarna e realça as dimensões farsesca e policialesca da política da antipolítica. As mentiras e as ameaças são igualmente armas suas[3]. Neste sentido, guardam profunda unidade frases de Bolsonaro como “Não existe racismo no Brasil” e “Se tudo dependesse de mim, não viveríamos neste regime” ou “Quem decide se um povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são as suas Forças Armadas [...]. Se nós não reconhecermos o valor desses homens e mulheres que estão lá, tudo pode mudar”.

Antes de passar adiante, gostaríamos de chamar a atenção para um fator de grande importância. É verdade que há certa complementaridade entre a militarização do neoliberalismo e a do governo federal. Quanto menos social, mais policial é o Estado. Também é certo que o governo se coloca como servo da classe dominante. Mas nem tudo é harmonia entre eles. Em seu irracionalismo e trapalhadas, o governo enseja fricções muitas entre ele e algumas frações da classe dominante. Isso está bem claro para alguns, a exemplo do empresário que recentemente disse: “Entre Bolsonaro e o demônio, eu voto no demônio”[4].

Mesmo Paulo Guedes e Mourão já saíram em defesa da vacinação em massa como saída para a retomada das atividades econômicas, coisa a que Bolsonaro e os grupos mais fiéis a ele vêm se mostrando refratários. E se o mandatário continuar a insistir nesse e em outros arroubos e irracionalismos, como a experiência nos permite supor que continue, até quando a classe dominante quererá sustentá-lo na presidência? E caso queira tirá-lo de lá, como agirão os militares: deixá-lo-ão cair para que continuem no poder com Mourão ou tensionarão no sentido de um golpe desabrido, mandando pelos ares a ordem jurídico-constitucional?

Seja como for, fato é que, desde o fim da ditadura civil-militar, nossa frágil democracia nunca se viu tão ameaçada, com reais chances de supressão.

  Cada um dos Volumes deste livro é formado por artigos que, em seu conjunto, visam a compor um quadro da conjuntura política que ora atravessamos. Destes artigos, alguns já foram publicados. Outros - a maioria, para falar a verdade - são inéditos. Eles não estão distribuídos segundo a ordem cronológica em que foram escritos. Em verdade, estão ordenados segundo os temas que abordam e como um complementa e dá prosseguimento ao outro.

Concebida durante o período pandêmico e da quarenta que então se impôs, a presente obra traz explícita essa marca, fazendo referência a tal em passagens diversas, sempre de acordo com a reflexão realizada em cada texto. Acreditamos que é importante deixar esse registro dos dias que vivemos. Embora façamos assim, buscamos sempre tratar de casos ou problemas relativamente pontuais à luz de mais ampla compreensão, quer histórica, quer geográfica ou mesmo teórica. Por esse caminho, perseguimos o objetivo de evitar os extremos da generalização vazia e do empirismo tacanho, fechado em si mesmo.

Não fez parte de nossas intenções tratar os temas até exauri-los. Nem poderíamos. Quisemos, isto sim, apenas evidenciar alguns de seus traços e implicações, os que reputamos de maior relevância. Quanto a isso, exemplar é o texto referente ao negacionismo na e da pandemia (A “razão da desrazão” ou a ordem por sob o caos: notas sobre o negacionismo).

Com o processo pandêmico ainda em curso, sem perspectiva segura de quando terá termo, seria impossível tratar do tema ao longo de todo esse período. Assim, tocou-nos tão somente pôr em relevo, durante o período que a pesquisa cobriu, o que do fenômeno do negacionismo mais se impunha às relações sociais e, por conseguinte, à nossa atenção. Essa observação é válida para todos os textos aqui coligidos. Dessa maneira, tratamos da “história imediata”, na qual estamos imersos, olhando para além dela.

Mais uma observação. Ao longo da pesquisa, pudemos ver que a maior parte dos autores que falam da antipolítica de Bolsonaro o fazem a partir de certa visão institucionalista e/ou essencialista, como se fosse possível enclausurar a política em instituições e atribuir a ela apenas ações virtuosas. Para eles, Bolsonaro representa a antipolítica porque desrespeitoso e ameaçador às instituições, a suas regras. De nossa parte, ancorados numa visão realista (ampla e complexa) da política e dos conflitos que ao fim e ao cabo ela implica, entendemos que ela se faz por dentro e por fora das instituições, com elas, sem elas e mesmo contra elas. Atentar contra as instituições não é ato menos político do que submeter-se a elas.  

A bem da verdade, quanto mais levado a sério, mais pueril nos parece tal institucionalismo. Embora inegavelmente importantes, as instituições são nada mais que a coagulação da correlação de forças (entre classes e grupos) de dado momento, podendo, por isso, ruírem ou serem transformadas tão logo aquela correlação de forças sofra mudanças. Para dizer de modo simples e direto: elas não são sagradas nem eternas.

A esse respeito, é impossível ignorar a força e a verdade das palavras de Marx e Engels em A ideologia alemã: “A atitude do burguês para com as instituições de seu regime é como a atitude do judeu para com a lei; ele as transgride sempre que possível em cada caso particular, mas quer que todos os outros as observem” (MARX e ENGELS, 2007, p. 181)[5]. De maneira ainda mais acentuada, impossível ignorar que, sob o domínio do capital, “tudo o que é sólido desmancha no ar” (MARX e ENGELS, 2006, p. 88)[6], por sua dinâmica contínua de construção, destruição e reconstrução.

Dedico este livro a “Dona Jacira”, meu solo mátrio; a Maria Beatriz cujo sorriso luminoso dissipa qualquer desavisada penumbra; a Nayra Oliveira, “minha nega” de toda vida; a todos os profissionais de saúde que, com verdadeiro compromisso em favor da vida, se colocaram na linha de frente do combate à Covi-19; a todos os sonhadores que inspiram e, tijolo por tijolo, com fé e luta vão pavimentando caminhos e dando realidade a um mundo de paz, justiça e liberdade.    

Por fim, cabe-me apenas dizer: sou filho do meu tempo e deste chão em que firmo os pés e deito raízes. Daqui, de uma localidade triplamente periférica[7], falo do Brasil para o Brasil. A ciência não se me afigura como instrumento de fuga da realidade social. Muito ao contrário. É através dela que procuro compreender e tomar parte nos conflitos sociais que a conformam. Escrever na primeira pessoa do plural[8] é, a um só tempo, uma opção gramatical, epistêmica e política. Julgo que não poderia fazer coisa diferente neste momento em que a luta de classes e grupos vai assumindo, paulatinamente, feições de guerra e por isso funde-se, de maneira dramática, à defesa da própria vida.

 Israel Souza

07/03/2021



[1] Os versos são da canção É o que me interessa, composição de Lenine e Dudu falcão.

[2] A dimensão farsesca da antipolítica diz respeito ao aspecto ideológico do fenômeno. Como tal, de modo nenhum, ela exclui a existência de convicções sinceras entre bolsonaristas. Não fosse assim, seria difícil explicar o fato de uns tantos entre eles, desrespeitando as regras de isolamento social, se exporem ao novo coronavírus. Como informam os meios de comunicação, muitos foram a óbito. Isso é mais que farsa e ignorância. Há convicções sinceras nesse meio. 

[3] Enquanto escrevemos estas palavras, a página de Aos fatos destaca que, em 794 dias como presidente, Bolsonaro deu 2547 declarações falsas ou distorcidas. São mais de 3 por dia. Disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/. Acesso em: 05 fev. 2021. A referida página faz esse levantamento diariamente.

[5] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

[6] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São: Global, 2006.

[7] Moro em Cruzeiro do Sul, periferia do estado do Acre, que é periferia da Amazônia, que é, por sua vez, periferia do Brasil.

[8] Com a única exceção destes parágrafos últimos.

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