Israel Souza[1]
Em recente carta, onde expunha seus propósitos para as eleições municipais do ano que vem, a FPA afirmava ter “a marca da democracia e da amplitude”. Mas qual é a democracia da FPA? Que democracia a coalizão promove no Acre? O texto que segue é uma análise da atual conjuntura política acreana e dá continuidade à reflexão já iniciada por dois outros textos (Eleições 2010: um olhar a partir “dos de baixo” e Hegemonia em declínio e subversivismo no governo da FPA). Para responder às perguntas acima, recorremos a fatos recentes e procuramos mostrar também o que há por trás da desesperada defesa do “manejo sustentável”.
Desde o início de sua formação, a FPA (Frente Popular do Acre) é encabeçada pelo PT. As estrelas da coligação sempre foram estrelas petistas: Tião Viana, Jorge Viana e Marina Silva. A elas cabia concorrer ou indicar quem concorreria a cargos majoritários. Crescer à sombra dessas figuras foi vital. Por um lado, elas possibilitaram transcender os preconceitos que - à época - pesavam sobre o PT e sobre os partidos de esquerda em geral. Todavia, por outro, impossibilitaram que surgissem novas lideranças.
O tempo mostrou que, na FPA, aquelas estrelas eram centrais e centralizadoras. Não é por outro motivo a incógnita em torno do nome que vai concorrer à prefeitura da capital nas eleições municipais do ano que vem. E o afastamento de Fernando Melo (antes PT e agora PMDB) e Sérgio Petecão (antes PMN e agora PSD), sujeitos cujas aspirações pessoais não encontravam ali satisfação, repousa sobre o mesmo fundamento.
Tendo atingido a popularidade das figuras maiores, o declínio da legitimidade da FPA apenas acentuou o problema. Nesse novo cenário, os coadjuvantes se sentiram à vontade para reivindicar mais espaço. Despontando como um nome de certa força para concorrer à prefeitura de Rio Branco ano que vem, a deputada federal Perpétua Almeida (PC do B) é barrada pela cúpula petista, que teima em não abrir mão da candidatura majoritária. Talvez a cúpula prefira, outra vez, investir em alguém sem peso popular e domesticável, confiando que o domínio da máquina estatal, o controle sobre a imprensa e o poder econômico serão suficientes para eleger quem quer que seja. As últimas eleições, porém, mostraram que as coisas não são bem assim.
Em carta recentemente publicada, onde a FPA explicita seus propósitos para as eleições próximas, diz-se que esta coalizão “tem a marca da democracia e da amplitude”. Entretanto, PV e PC do B - aliados históricos mas que no momento reivindicam mais espaço e respeito - foram excluídos de sua confecção. Embora fale de um debate apenas “iniciado” “para preservarmos o patrimônio que nos unifica intocado”, a carta já apontava Tião Viana (petista e governador do estado) e Raimundo Angelim (petista e prefeito de Rio Branco) como “lideranças legítimas e capazes de conduzir o debate na FPA para a escolha do melhor candidato a ser apresentado para o povo de Rio Branco”. Sem surpresas, a carta reconhecia “que o Partido dos Trabalhadores tem legitimidade e história política para reivindicar a candidatura a prefeito pela Frente Popular”. A PV e PC do B caberia apenas “refletir” e “seguir” “sempre com a frente”.
Pelo exposto, compreendemos que a democracia na FPA significa obedecer ao comando do PT e que ela e a “amplitude” podem muito bem coexistir com a exclusão dos divergentes.
Durante os primeiros governos da FPA o eixo ideológico-propagandístico era ambiental. O “desenvolvimento sustentável” e a “florestania” ocupavam, então, lugar de destaque. Não sem razão, os governos de Jorge Viana (1999-2006) tiveram como slogan “Governo da Floresta”. Bem lembramos que o símbolo utilizado era uma árvore.
Representando, aos olhos de muitos, os interesses da maioria (“dos de baixo”), o domínio da FPA era, nesse momento, fortemente apoiado no consenso, nas ideias. Recorrendo a Gramsci, pode-se dizer que ela desempenhava um papel de liderança. Gozando de amplo apoio popular, Jorge Viana proclamava seu amor pelo estado. “Eu não administro o Acre. Eu cuido do Acre”, afirmava. “Quem ama cuida, trata com carinho”, dizia a música de uma de suas campanhas.
Passados alguns anos, a propaganda ambiental já não ocupa o lugar de antes. Já quase não se fala em florestania, termo-fetiche durante os governos de Jorge Viana. E a razão disso é relativamente simples. Embora não possuam uma visão sistemática sobre o assunto, muitos são os que já não levam a sério a idéia de que o modelo implantado no estado seja verdadeiramente “sustentável”. É possível encontrar tal percepção nas paradas de ônibus, nas escolas, universidades, igrejas, sites, blogs etc.
Pode-se afirmar que, enquanto na academia madurava a reflexão crítica sobre o “desenvolvimento sustentável”, os “projetos sustentáveis” mostravam seu caráter eminentemente capitalista, ambientalmente destrutivo e socialmente injusto. Vale lembrar que durante o primeiro mandato de Jorge Viana houve um aumento de 34% no incremento anual médio do desmatamento, algo equivalente a 878 km2/ano.
Por outro lado, nos últimos anos, a questão social não passou por mudanças positivas e substanciais. A crítica de Bocalom (candidato da oposição pelo PSDB) de que, em vez de fazer um governo para a floresta, faria um governo para as pessoas mostrou ter apelo popular. Ao suceder Jorge Viana, Binho (2007-2010) dizia que seu antecessor havia “arrumado a casa” e dado infra-estrutura ao estado. Para ele, era hora de “cuidar do social”. Talvez ele quisesse responder à crítica da oposição e dar uma marca própria à sua gestão.
Prometeu fazer do “Acre o melhor lugar para se viver na Amazônia”. Terminou seu mandato e... foi morar em Brasília, aproveitar a gorda e imoral aposentadoria de ex-governador. E como ele pensou em resolver a questão social? Ampliando o número do Bolsa Família! Mesmo com todo o discurso e propaganda sobre o desenvolvimento do estado, os “condenados da terra” - que nestas paragens somam mais de 70 (setenta) mil famílias - continuariam dependentes da filantropia e submetidos ao despotismo estatais.
Os governos de Binho e Tião Viana usaram slogans que fugiam à temática ambiental. Ficava claro que a propaganda ambiental passava a voltar-se antes para consumo externo que interno. No governo Binho o slogan era Governo do Acre. Com todos e para todos. Já no governo Tião Viana é Governo do povo do Acre. Servir de todo coração. Isso representa, internamente ao estado, 1) o descrédito da propaganda ambiental; e 2) a tentativa de que, superando (ou encobrindo?) a justa fama de autoritário que o governo colheu ainda sob os mandatos de Jorge Viana, ele agora se apresentasse como humilde, democrático e popular - “nunca serão, jamais serão”...
Se, como temos analisado, o eixo ideológico-propagandístico do governo da FPA, internamente, se deslocou da temática ambiental para a democrático-popular, por qual motivo ele continua a defender o manejo como “a única saída para tirar o Acre do atraso”? O que representa para a FPA as atuais críticas vindas do seio das Reservas Extrativistas? Comecemos a responder a partir do óbvio.
Em primeiro lugar, a FPA continua a defender o manejo madeireiro (exploração de madeira, para ser claro) para não assumir o erro. Sobretudo, porque o deputado Major Rocha (PSDB) da oposição tomou parte ativamente nas denúncias sobre o manejo na Floresta Estadual do Antimary. Reconhecer os erros seria dar crédito a ele. Desse modo, insistir na defesa do manejo é, a um só tempo, uma maneira de não reconhecer o erro e evitar que a oposição ganhe crédito com isso. Mas há também sujeitos e interesses bem maiores em jogo. É hora de abandonar o campo do óbvio.
Importa destacar que o modelo de “desenvolvimento sustentável” do Acre foi implantado com apoio econômico, técnico e ideológico do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). E o que começou com este foi sempre acompanhado e aprofundado pelo Banco Mundial (BM). Em artigo recente (Chico Mendes, patrono do “capitalismo verde”?) lembramos que, no final de 2008, o Estado do Acre, através do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Acre (ProAcre), firmou contrato de 150 milhões com o BM - 120 milhões do banco e 30 milhões de contrapartida local.
Com previsão de duração de seis anos, o programa tem como foco de ação as margens das BR 364 e 317. Por ele, pretende-se promover o “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades de Conservação, Terras Indígenas e projetos de assentamento”. Aponta-se dessa forma para a expansão da exploração madeireira em outras áreas.
A relação dos governos da FPA com os bancos referidos acima foi, até pouco, um casamento de interesses bem sucedido. Os bancos faziam empréstimos e os governos, dispondo de verba, faziam uma obra aqui e outra acolá. Estética e estruturalmente mudaram a cara da cidade, ganhando simpatia e popularidade no espaço urbano.
Tal popularidade foi robustecida pelo carisma de suas principais figuras, pela base popular que o PT construiu ao longo de anos e pelo controle da imprensa. O que permitiu à FPA estreitar laços com as empreiteiras responsáveis por obras no estado, com as oligarquias e o empresariado locais. Com todos esses ela passou a compartir interesses e a atendê-los com relativa segurança - coisa em que as antigas forças políticas ficaram devendo. E ela pôde fazê-lo, sobretudo, porque é forte a influência que o Executivo exerce sobre outros poderes e instituições, como Assembleia Legislativa do Acre, Ministério Público Estadual, TRE-AC, Tribunal de Contas do Estado entre outros.
Vale dizer que, à medida que se afastava da base popular, a FPA foi se aproximando e ficando cada vez mais dependente dessa estrutura. Hoje quase a totalidade de seu “capital político” é disso dependente. Tivesse a oposição um terço ou um pouco menos de sua estrutura nas últimas eleições e ela (a FPA) teria perdido. Tivéssemos os críticos da política de “desenvolvimento sustentável” 10% do espaço que o governo usa para suas propagandas nos meios de comunicação, tivesse eco na imprensa acreana a voz dos que estão abandonados nas periferias, dos que precisam da saúde pública... O governo teria uma legitimidade muito menor do que a que hoje ele tem, se ainda lhe restasse alguma...
Cumprindo sua parte nos acordos firmados, o governo local faz a política indicada pelos bancos. E, externamente, os supostos herdeiros de Chico Mendes passaram a servi-los como garotos de propaganda. Com isso, por um misto de força e farsa, bancos responsáveis por assegurar os interesses do capital e dos países centrais na periferia viraram concretizadores do sonho do seringueiro acreano, amigos da floresta e de suas gentes. Para o Brasil e para o mundo, apresentam o Acre como modelo a ser seguido.
Por essa razão, ainda que internamente sem prestígio e sob sérias denúncias, o modelo de “desenvolvimento sustentável” do Acre deve ser propagandeado e defendido. Isso é ainda mais necessário nesse momento em que Jorge Viana, um dos relatores do Novo Código Florestal, é alvo de atenções nacionais e internacionais - os ruralistas, os madeireiros e os defensores do “capitalismo verde” precisam dele lá...
Mercantilizando e privatizando as florestas em nome da proteção ambiental, os acordos firmados com os bancos possibilitaram à FPA estreitar laços com ONGs defensoras do “capitalismo verde” e também com madeireiras, generosamente favorecidas pelos planos de manejo. Isso mostra o quanto que o governo tem a perder com esses bancos e sua “cúpula de apoio” caso o manejo seja suspenso, como reivindicam os moradores das Reservas Extrativistas.
Suspenso o manejo na Floresta Estadual do Antimary, abre-se precedente para que o mesmo ocorra em outras Reservas onde o dissabor dos moradores também é grande. Caso isso ocorra, como respeitar os contratos firmados com os bancos? Como manter externamente a credibilidade, se os povos da floresta - a quem a FPA diz representar - põem em questionamento o modelo adotado em nome deles? Com a credibilidade abalada, será ainda possível gozar do apoio das oligarquias e dos bancos? Por quanto tempo?
As denúncias sobre o manejo nas Reservas Extrativistas do Acre ganharam o Brasil e o mundo, fugindo do controle imediato da FPA. Para isso, contribuíram diretamente a Revista Isto é (n° 2188, de 19/10/2011) e a Carta do Acre. Esta foi resultado de uma oficina (Serviços Ambientais, REDD e Fundos Verdes do BNDES: Salvação da Amazônia ou Armadilha do Capitalismo Verde?) que reuniu gente do Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Rondônia, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Inglaterra, Alemanha, EUA etc. Outro fato que ajudou nesse sentido foi Petecão ter entregado um vídeo denúncia sobre o que está ocorrendo na Floresta Estadual do Antimary a Al Gore, ex-presidente dos EUA e ambientalista.
Internamente acuado pela oposição, questionado pelos povos da floresta, a quem diz representar, com críticas e denúncias circulando o Brasil e o mundo (a Carta do Acre já conta com versões em inglês e em espanhol). As coisas não vão bem para a FPA. Com a hegemonia em declínio, resta a ela recorrer mais sistemática e ostensivamente ao uso da coerção.
Isso explica:
- A pressão exercida sobre os moradores das Reservas Extrativistas, para que aceitem o manejo madeireiro e digam que ele é bom;
- A pressão exercida sobre as organizações que assinaram a Carta do Acre, para que retirem sua assinatura. É provável que algumas o façam. Sobretudo aquelas que têm convênios com o governo. Mas caso o façam, isso não provará que o teor da carta não se sustenta, mas apenas explicitará a maneira de a FPA lidar com as críticas;
- O destempero de Gilvandro Assis, assessor especial do governo, ao convidar a imprensa a se retirar da audiência pública ocorrida na Floresta Estadual do Antimary (ver aqui);
- A suspensão do programa de rádio Resistência, apresentado por Osmarino Amâncio, seringueiro que é também um dos principais críticos do manejo. Tão logo souberam que Osmarino estava com o programa, os agentes estatais deram um jeito de boicotá-lo (ver aqui). O programa foi ao ar somente uma vez. O tempo foi suficiente para receber dezenas de cartas em que seringueiros contam a verdadeira história das Reservas e do “manejo sustentável”;
- O impedimento que os exemplares da Revista nacional Isto é circule em solo acreano. Em um número, a revista mostrava a relação dos políticos da FPA com a empreiteira responsável pela construção da BR-364, já tantas vezes envolvida em denúncias de superfaturamento. Já no n° 2188, de 19/10/2011, a revista denuncia os crimes do manejo.
Há quem diga, que diante desse difícil cenário, a FPA pesará bem as coisas, e se voltará a sua “tradição democrática”. Não temos ilusões quanto a isso. Enquanto estiver à frente do poder estatal, a FPA não terá legitimidade nem condições de falar e nem de tratar da democracia. Não de maneira séria e consequente. Se ela o fizesse, exporia ainda mais seus problemas, sobretudo os que dizem respeito à gestão estatal. Isso equivaleria a dar mais munição a seus adversários.
Desse modo, seu domínio vai, claramente, se deslocando do convencimento para a coerção. As ideias continuam importantes. Basta ver o uso massivo dos meios de comunicação nas últimas semanas para defender o manejo. Mas ocupam um lugar cada vez menor. Os representantes da FPA vão agindo de maneira cada vez mais reativa, intolerante, repressiva, despótica. Não há democracia que resista. Cabe perguntar: até onde eles são capazes de ir para manter o poder estatal? Difícil responder. Mas quem chegou a esse ponto, fazendo o que faz e julgando-se inocente e vítima de perseguição, é capaz de ir muito mais além. Podem até continuar falando em amor ao Acre, mas os tempos são de cólera...
[1] Cientista Social e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
Um comentário:
Formidavel!
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