Israel
Souza[2]
Em seu período de governo, os militares
colocaram em marcha um conjunto de políticas voltadas para a “integração da
Amazônia” ao novo processo de acumulação capitalista em curso no país. Sob o
clima da Guerra Fria e da febre da “modernização”, três eram os eixos dessas
políticas: segurança, desenvolvimento e
integração.
Três eram os eixos, e três também as
justificativas em que se assentava o projeto dos militares: 1) evitar a
inserção do “inimigo externo” (comunismo)
em território brasileiro pela selva; 2) promover a valorização deste “mundo perdido”; e 3) “integrar” esta imensa e rica região ao resto do Brasil.
Juntos, esses eixos formaram uma espécie de
tripé em que se alicerçou ideológica e estrategicamente o projeto dos militares
para a Amazônia. A crença depositada nessa estratégia pode ser verificada no
lema adotado pela Escola Superior de Guerra e na celebridade do trocadilho que
virou slogan: Segurança e Desenvolvimento e
Integrar para não entregar, respectivamente.
Em certo sentido, pode-se mesmo dizer que a
integração fez as vezes de ponte entre o desenvolvimento e a segurança. Claro.
Contaram também outros fatores para a consubstanciação dessa proposta
integracionista, como a possibilidade de multinacionais automobilísticas
instalarem-se em solo brasileiro. Cunha lembra que
[...] para atender às exigências das
instalações das multinacionais automobilísticas [...] os governos militares não
hesitaram em priorizar a construção de várias estradas, inclusive em trechos
extremamente complexos, devido às dificuldades geomorfológicas [...] (CUNHA,
2009: 14).
Entre essas estradas, destacam-se as BRs 230
(Rodovia Transamazônica), 163 (Cuiabá-Santarém), 364 (Cuiabá-Porto Velho) e a
317 ou, como também é conhecida, a Rodovia Interoceânica.
Para a construção de seus eixos viários, o
Brasil contou com um generoso empréstimo da parte do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (BM). Empréstimo que chegou à soma de
400 milhões de dólares, “o maior empréstimo já feito a um país para construção
de estradas” (LINHARES apud PAULA, 2006: 108).
Dessa forma, os militares criaram as
condições para a expansão do grande capital na Amazônia, além de certo alívio
para as “tensões sociais internas decorrentes da expulsão de pequenos
produtores do Nordeste e do Sudeste pela modernização da agricultura” (BECKER,
2007: 26).
Entretanto, a adoção de tais políticas
resultou em destruição ambiental, expulsão e/ou extermínio de significativas
frações das populações indígenas e camponesas. De outro lado, o dúbio
nacionalismo militar não só não impediu como mesmo estimulou através de
incentivos da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) a
implantação de projetos estrangeiros.
Além disso, ao fim deste período (1964-1986),
destaca Cunha (2009: 56), podiam-se contar 2.642 projetos financiados pela
Sudam. Destes, 1.202 (29%) foram destinados à pecuária extensiva de corte, 682
(16%) para a indústria madeireira, 483 (12%) para a agroindústria e 275 (7%)
para a agropecuária.
Esses financiamentos, imagem perfeita do tipo
de desenvolvimento pretendido para a região, fizeram crescer em paralelo e
ritmo assustador a concentração fundiária e os conflitos dela resultantes.
Neste particular, o Acre, onde a substituição do extrativismo pela pecuária
extensiva de corte, aliada à grande propriedade fundiária, consistiu no eixo
central da modernização (PAULA: 2006), desponta como caso emblemático.
Fiel às orientações vindas do poder central,
o governo Wanderley Dantas (1971-1974) clamava em retumbante tom: “O Acre, a nova
Canaã. Um Nordeste sem seca, um Sul sem geada”. E ainda: “Venha produzir no
Acre, investir no Acre e exportar pelo Pacifico”. Os que estavam à
procura de oportunidades de lucro não usaram de cerimônia para aceitar o
convite.
Segundo Cunha (2009: 64), enquanto o
percentual médio de crescimento da pecuária no país, entre 1970 e 1980, foi de
151%, a média da região Norte foi de 216%. Durante esse mesmo período no
estado, em que o Banco do Estado do Acre (BANACRE) disponibilizou várias linhas
de créditos, o rebanho bovino saiu de 72 mil para 298 mil cabeças. Alcançando
um crescimento de 413%. Com isso, já em 1978, “cerca de um terço das terras
cadastradas no INCRA encontrava-se sob domínio de investidores do Centro-Sul,
em sua maioria oriundos do estado de São Paulo” (PAULA, 2006: 108).
Não foram poucos os impactos desta
concentração, posto que “72% da população do estado vivia no campo e que 85,3%
das famílias ocupadas no setor primário não eram proprietárias das terras que
cultivavam” (PAULA, 2006: 110). Num mesmo e único processo, cresceram pecuária,
concentração fundiária... e conflitos. Isso vai marcar, sob a forma da
violência, a luta pela reconfiguração territorial por que passa o estado nessas
décadas.
Objetivando lidar com a pecuária ou
simplesmente especular no mercado fundiário, os novos donos teriam que
fazer nestas terras uma dupla “limpeza”, cujos impactos foram enormes: 1)
tinham que “livrá-las” dos sujeitos que aí habitavam, isto é, dos índios, dos
seringueiros e demais “posseiros”; e, só então, 2) derrubar a floresta, abrindo
espaço para a plantação dos pastos necessários à criação do gado.
Nesse cenário,
[...] os moradores da floresta – os
seringueiros – veem seus territórios de vivência serem ameaçados e eles prestes
a serem “desterritorializados” (expulsos e violentados pelas desapropriações,
fosse por via indenizatória, ou pela ação física direta lhes excluindo da
terra). Daí, as condições que emergem de acirramento das contradições postas pelo
“chamado processo modernizante” do país, em que a luta de classes estará no
centro de todo o processo de produção deste espaço. Tem-se, então, uma década
(1970) em que ocorre o início da organização da luta, no despertar para a
resistência, perante a violência suscitada (SILVA, 2006: 136).
Da
resistência à criação das RESEX
É nesse contexto que surge o Movimento dos
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais do Acre (MSTR), fazendo-se o principal
protagonista da resistência a esse processo. Suas estratégias de luta eram
variadas, desde o confronto físico direto, passando pela plantação de roçados,
até às demandas judiciais. Entre estas, uma tornou-se marca de suas lutas: o
“empate”.
O “empate” consistia em defender a área
florestal que estava sendo ou prestes a ser desmatada, abraçando-se às árvores.
A estratégia rendeu vitórias ao movimento. Considerada em seu aspecto
extremado, ela pode ser também interpretada como um sinal da intensificação dos
conflitos e do aumento das mortes (tanto do lado dos seringueiros quanto do
lado dos fazendeiros) que marcarão a década de 1980.
No ano 1982, o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais (STR) de Xapuri, sob a liderança de Chico Mendes, se lança
na formulação de uma proposta original de reforma agrária. “Há uma necessidade
grande e urgente”, dizia o seringueiro socialista (Chico Mendes) em entrevista
dada a Costa Sobrinho (2006), “de se evitar o desmatamento da Amazônia [...]
Pensamos em criar uma alternativa de preservação sem tornar a Amazônia um
santuário intocável, mas garantindo a sobrevivência com dignidade dos que vivem
na floresta”.
Nascia aí a proposta das RESEX, consideradas
a “reforma agrária do seringueiro”, porque afirmavam a territorialidade própria
do seringueiro e do homem da floresta, o domínio das populações locais sobre
seus territórios e recursos, o valor e os saberes do homem da floresta contra o
capital.
Como os “empates”, essa proposta revelava o
intuito de impor limites ao capital e de “empatar” (barrar) a “modernização”
nestas paragens. Criadas através do Decreto-lei Presidencial n° 98.987/90, as
RESEX destacam-se, dentre outras coisas, pela defesa: 1) de que a terra e a
natureza deixassem de estar subordinadas aos interesses imediatos de capitais
privados e passassem a ser bem público; 2) que sua utilização incorporasse
demandas sociais das populações da região cujos saberes deveriam servir de
elemento orientador de políticas públicas destinadas à elevação dos níveis
sociais de vida e renda de forma compatível com a conservação da paisagem
natural.
Na formulação inicial das RESEX, somam-se aos
elementos acima expostos dois outros, também eles dignos de nota: 3) o
proeminente papel atribuído ao Estado, considerado a “referência central para a
reversão do modelo então em curso” (PAULA, 2006: 119); e 4) o descarte da
exploração de madeira para fins de comércio (PAULA, 2005).
Com a criação em 1985 do Conselho Nacional do
Seringueiro (CNS), a luta dos trabalhadores rurais pela preservação da floresta
em pé – do que dependia sua sobrevivência – tomou maior dimensão e atraiu o
favor das opiniões públicas nacional e internacional.
Vem daí a “interpretação clorofilada” que
lhes impingiram as ONGs e o movimento ambientalista, parceiros de que passaram
a gozar de certo apreço e apoio. Mesmo com discordâncias de modo nenhum
diminutas, os ambientalistas foram fundamentais na discussão das BRs 364 e 317.
As
RESEX contra as estradas
Costa Sobrinho (2006: 15) destaca que na
“região dos vales dos rios Acre e Purus, quase sempre seguindo os traçados
estratégicos das BRs 364 e 317, e também AC-40, as terras alienadas foram
ocupadas pelos novos proprietários”. Não é estranho assim que contemos ao longo
da BR-317, entre outros, os assassinatos do fazendeiro Nilo Sérgio e do
sindicalista Ivair Higino.
Por isso, era constante a
preocupação dos seringueiros com o asfaltamento das BRs. Já Chico Mendes,
atento a isso, dizia:
O asfaltamento da BR-364 também foi
discutido por mim na Comissão de Operação de Verbas do Senado Americano.
Denunciamos a destruição da floresta, os impactos ambientais causados pelo
asfaltamento da estrada no trecho Cuiabá-Porto Velho. Falei que, se a intenção
era levar desenvolvimento para os povos daquela região, o que ocorreu foi
exatamente o contrário. A estrada serviu para beneficiar meia dúzia de
latifundiários e arruinar a vida de milhares de trabalhadores.
A observação do seringueiro
socialista torna-se ainda mais pertinente quando se toma em consideração o fato
de que, no ano de 1985, o Brasil contraiu um empréstimo de 146,7 milhões do BID
(CUNHA, 2009: 68), para pavimentar o trecho da BR-364 que ligava Porto Velho (RO)
a Rio Branco (AC). Devido aos desastrosos impactos, causados pelo asfaltamento
do trecho Cuiabá-Porto Velho, o BM estava sob fortes críticas. Críticas que
podiam ser estendidas ao BID, caso continuasse com o intento de financiar o
asfaltamento do trecho Porto Velho-Rio Branco. Diante disso, o BID exigiu que o
governo brasileiro tomasse medidas de mitigação dos impactos sociais e
ambientais.
Como resposta, é criado o Programa de
Proteção ao Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas (PMACI). Este não passou
de uma forma de o governo brasileiro assegurar o recebimento do empréstimo. De
tudo o que lá se discutia e decidia, estavam excluídos seringueiros, demais
trabalhadores rurais, e indígenas. Após várias tentativas de diálogo, o CNS
encabeça a crítica ao programa, lançando uma nota que muito diz a respeito do
posicionamento dos “povos da floresta” em relação à estrada. Eles, então,
reivindicavam:
1.
Que
as obras da estrada sejam paralisadas até serem tomadas medidas concretas que
garantam aos seringueiros a segurança das áreas nas quais vivem. 2. Que sejam
criadas Reservas Extrativistas em toda a área de influência da BR-364, nas
quais predominem as atividades extrativistas, antes que seja asfaltada a
estrada. 3. Que os órgãos governamentais entendam que proteção ambiental na
Amazônia significa garantia da preservação da floresta para aqueles que vivem
nela sem destruí-la, ou seja, os índios e os seringueiros.
Observamos, pela nota acima, que as
RESEX são sugeridas como uma espécie de contraponto à estrada – uma forma de
proteção da floresta e de seus moradores contra os impactos que poderiam vir em
seu rastro – e que a floresta deveria ser preservada em benefício daqueles que
nela vivem e dela cuidam. E a exploração de madeira para fins comerciais não conta
entre as atividades extrativistas que deveriam predominar ao longo da estrada.
Não resistindo às pressões, o BID recuou e
suspendeu o financiamento da obra. Pode-se dizer que, naquele momento de
intensa preocupação com os desastres ecológicos nos cenários nacional e
internacional, a questão ambiental foi um obstáculo à modernização capitalista
na região. Para isso, ao lado das justas reivindicações e da grande força de
mobilização e resistência dos seringueiros, foi determinante a interpretação
clorofilada que fizeram de sua luta. A questão ambiental foi, assim, um
elemento que, inteligentemente captado, lhes permitiu explorar o caráter
premente e universal de suas causas.
A inversão do processo
Passados os anos de chumbo, o projeto de
construção das estradas seguirá com a abertura do regime pós-ditatorial. Com
recursos próprios, o governo brasileiro conseguiu asfaltar o trecho Porto
Velho-Rio Branco. Mas, uma vez chegada à capital acreana, a estrada segue
cortando o estado de ponta a ponta, rumo a Cruzeiro do Sul, segunda maior
cidade do estado.
A ligação com o Pacífico teria ainda que
esperar pelo asfaltamento da BR-317. Esta, sim, cortando o Acre, passando pelo
Peru, faria enfim a ligação com aquele Oceano e com o promissor mercado do
Leste Asiático, situado às margens do lado de lá.
Coincidindo com o processo de “reformas” do
Estado, esta abertura marcará, além do abandono da inserção da Amazônia em um
projeto nacional de desenvolvimento, um reordenamento nas relações de poder
entre “sociedade civil” e sociedade política. Isto implicou, dentre outras
coisas, a transferência de algumas atribuições desta para aquela e colocou, no
lugar do Estado, o mercado como referência central para o desenvolvimento.
Como esta redefinição do papel do Estado será
acompanhada por certa “relativização” das fronteiras nacionais, o sentido de
geopolítica e os sujeitos que a “desenham” serão também redefinidos. Antes, a
geopolítica era pensada, sobretudo, no sentido de conquista/ocupação e
apropriação de territórios e recursos. E seu principal autor era o Estado (em
sentido restrito). O slogan Integrar para não entregar, dos militares, está em plena
consonância com esta percepção.
Com o período que se abre, tão importante
quanto conquistar/ocupar torna-se o domínio sobre as percepções e decisões
acerca da gestão/uso e apropriação do território e seus recursos. Isto
fortalecerá ainda mais os organismos da “sociedade civil” (responsáveis que são
pela tessitura da hegemonia) e, sem desprezar as solicitudes estatais, seu papel
na formulação de políticas de desenvolvimento e da geopolítica.
Destaca-se, a partir de então, a atuação de
ONGs e agências multilaterais na região, como BID e BM, que, aproveitando-se
das lacunas deixadas por instituições federais (como a Sudam) e a descentralização
administrativa, passam a realizar investimentos e a gerenciar projetos
setoriais de “desenvolvimento sustentável”.
O BM, tutelando o Estado e tomando a
dianteira de movimentos sociais e ambientalistas diversos, se apressou em
estabelecer um marco conceitual sobre “desenvolvimento sustentável” nos termos
mais aceitáveis ao capital (PAULA, 2005). Assim, aliado ao seu já velho e
conhecido poder político/técnico/financeiro, o consenso criado por esta
instituição em torno desse conceito mostrou-se extremamente eficaz em
influenciar políticas de desenvolvimento e em mercadificar bens naturais.
Tudo isso marca o novo cenário em que o projeto de conclusão das BRs 364
e 317 continua. No trecho acreano, a 317 já foi concluída. Da 364, restam dois
trechos. O primeiro liga Sena Madureira a Feijó; o segundo, Tarauacá a Cruzeiro
do Sul. Ambos, já em andamento, estão incluídos entre as obras do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) para o estado. A previsão de conclusão era 2011[3].
Todavia, a darmos fé à interpretação
hegemônica sobre o processo em curso no Acre, parece já não haver motivos para
preocupações com as estradas. Os tempos agora seriam outros, mais favoráveis. É
amplo o consenso segundo o qual, com a chegada da FPA ao poder estatal no ano
de 1999, foram tomadas iniciativas relevantes para a indução de um “novo
projeto” de desenvolvimento. Projeto celebrado como primor de harmonia entre
desenvolvimento econômico e preservação da floresta e do modo de vida de seus
habitantes.
Supostamente, haveria uma comunhão de valores
e práticas entre as lutas de resistência à expansão predatória do capitalismo
na Amazônia-acreana durante as décadas de 1970/80 e as ações governamentais do
pós-1998. Estas, coroação daquelas. Com isso, o movimento, que inteligentemente
havia captado em seu favor a questão ambiental, agora se vê refém da interpretação
clorofilada que dele fizeram. Castraram o conteúdo subversivo de sua luta,
e seu suposto ambientalismo ganhou status
de política estatal.
A despeito disso, pensa-se, desde 1999 o
Estado passou a representar uma estratégia de “desenvolvimento sustentável”; e
os grupos subalternos, agora assistidos, teriam acesso aos ativos econômicos
necessários a um digno padrão de vida. Essas expectativas assentam-se no Plano
de Desenvolvimento Sustentável, financiado pelo BID. Seu objetivo:
“mejorar la calidad de vida de la población y preservar el patrimônio natural
del Estado de Acre em el largo plazo.”
O plano é constituído de três componentes: 1)
manejo sustentável e conservação dos recursos naturais; 2) apoio e fomento do
desenvolvimento produtivo sustentável e do emprego; e 3) infraestrutura pública
do desenvolvimento. Amparado, o governo pavimentou algumas rodovias, como a BR-317, até o município de Assis Brasil, o
trecho Feijó-Tarauacá da BR-364, bem como a estrada que liga o município de
Xapuri à BR-317 (SOUZA, 2005).
Como se vê, excetuando-se a segurança, dois
(desenvolvimento e integração) dos três eixos que compunham a estratégia de
modernização dos militares para a Amazônia permanecem em cena[4].
Então, hoje, qual o significado das estradas?
Sem embargo, pode-se dizer que tão grande
quanto os interesses é a confusão que as estradas suscitam. Tais são os pontos
que norteiam as interpretações correntes a seu respeito: BR-364: 1) integra o
estado e tira as populações locais do isolamento; 2) promove o desenvolvimento,
reafirmando a territorialidade dos grupos subalternos e conservando a floresta.
BR-317: 1) reafirma a territorialidade dos grupos subalternos e conserva a
floresta; 2) promove a integração sul-americana e o desenvolvimento
local-regional-nacional-continental; 3) sua conclusão contraria os interesses
dos EUA na região; e 4), apesar de importante, ela é apenas um corredor de
exportação.
Por uma questão de metodologia e de clareza
expositiva, abordaremos, no que for possível, as estradas em separado.
Começando com a BR-364, passando pela BR-317, tomando em conta os pontos acima
elencados e daí extraindo implicações mais gerais. Esta separação é assumida no
intento de melhor apresentar o problema, pois, como veremos, as duas estradas
se inscrevem no mesmo quadro da política ambiental acreana e, juntas, desenham
uma geopolítica alheia aos interesses dos grupos subalternos da região. A
política ambiental acreana é, nesse plano, resultado e agente dessa
geopolítica.
BR-364:
política ambiental... e espoliação
Embora não se possa dizer que a BR-364 tirará
as populações locais do isolamento[5],
não resta dúvida sobre seu físico caráter integrador. Por isso, nosso foco será
o segundo ponto, marcado por uma suposta harmonização entre desenvolvimento,
territorialidade dos grupos subalternos e conservação da floresta.
O que teria possibilitado esta suposta
harmonização?, perguntamos. De acordo com a interpretação hegemônica, a adoção
do novo modelo de desenvolvimento e sua fina sensibilidade para com as questões
ambientais – ausentes no projeto dos militares -, respondem.
Como que por derivação mecânica, daí teria
resultado uma inversão quanto aos efeitos das estradas. Antes, estas foram
consideradas um perigo para a floresta. Agora, são consideradas salvação. Ou
melhor, a única salvação possível. “Hemos dicho que la única manera de que la administración
forestal sea viable es crear infraestructura de transporte confiable”(La Amazonía del mañana), disse um dos
representantes do governo da FPA ao solicitar empréstimo do BID.
A isto, o banco respondeu “com la aprobación
de um préstamo por 64,8 millones de dólares para el proyecto de pavimentación”.
Trata-se do Contrato de Empréstimo BID 1399/OC-BR para implantação do Programa de
Desenvolvimento Sustentável do Acre. O valor é de 108 milhões de
dólares, dos quais 64,8 milhões do BID e 43,2 milhões de contrapartida local.
Este empréstimo resultou num processo de reconfiguração territorial de
grande magnitude, pois, ainda que referenciado na BR-364, a área geográfica do
Programa compreende todo o território do estado.
Derivaram-se daí “normas de protección de la
selva lindante com la carretera por medio de medidas entre las que se cuenta la
creación de parques estatales” e a implementação de “ter conjunto de proyectos
para conservar y administrar los recursos naturales, desarrollar industrias que
aporten valor a estos recursos, y pavimentar ter segmento de 70 kilómetros de
la BR-364”.
Tomadas estas iniciativas, pensa-se, já não
haveria perigos a correr com a estrada. Até mesmo RESEX foram criadas às suas
margens, aparentemente, atendendo às reivindicações e aos interesses “dos de baixo”. Uma análise da política
ambiental do governo mostrar-nos-á que a percepção sobre a estrada pode – pelo
menos, para alguns – até ter mudado, mas não seus efeitos. O monstro não sumiu.
Disfarça-se de médico.
Por certo, elementos outros há que dão certa
solidez à interpretação de que a política ambiental em curso no estado superou
os problemas agrários e pôs fim aos impactos antiecológicos do asfaltamento das
estradas. Com base em Paula (2006: 122-123), destacamos três desses elementos:
1) o relevante acesso dos grupos subalternos a terra; 2) diminuição no número
de grandes propriedades fundiárias (a percentagem dos imóveis superiores a 1000
ha caiu de 73% para 20% da área total do território acreano); e 3) criação de
outras modalidades de regularização, como Terras Indígenas (Tis), Unidades de
Conservação Integral e de Uso Sustentável, que, juntas, ocupam aproximadamente
50% do território do Acre.
É preciso não pouca cautela para evitar
deslumbramentos com tão luminoso cenário. Assim, sem desprezar os avanços,
veremos que estas luzes guardam suas sombras. No que tange à questão agrária, é
preciso que se diga que, das terras de domínio privado cadastradas no INCRA,
temos o seguinte quadro: 85% dos imóveis inferiores a 100 ha ocupam apenas 20,5%
do total; por seu turno, 3,24% dos superiores à mesma medida alcançam 70%.
Mercadificação e
privatização da floresta
Com a eleição da FPA, a lógica do mercado
passa a dar a tônica das políticas ambientais. A obsessão pelo desenvolvimento
centrado na mercantilização dos recursos naturais se instala no Estado (SOUZA,
2005), invertendo importantes reivindicações da luta dos anos de 1970-1980. O
sonho socialista cede espaço ao pesadelo capitalista: “[...] hoje nós temos
clareza de que o que a gente tem, outras regiões do mundo e do país não têm, e
que é possível com o que a gente tem entrar no mercado, na lógica do mercado (grifo nosso) [...]” (OLIVEIRA, 2005: 286).
Como se depreende do Programa de Desenvolvimento
Sustentável do Acre, a exploração de madeira para fins comerciais é
hoje a principal referência do projeto em andamento:
Mais de 90% da área do Acre é composta
por cobertura florestal original, o que gera condições para um ordenamento
adequado do uso deste patrimônio, baseado na sustentabilidade ambiental, em
mecanismos de inclusão social e no crescimento de uma economia florestal forte.
Deste total, aproximadamente seis milhões de hectares apresentam aptidão e
acessibilidade para a produção florestal sustentada e contínua, representando
uma economia florestal potencial de 1 bilhão de dólares/ano com a possibilidade
de criação de 5.000 empregos diretos.
Os próprios representantes do governo
enaltecem este feito, afirmando que “La explotación de la selva es ya la industria
más importante de Acre”. O BID, que encontrou nesse estado o laboratório
perfeito para suas experiências, também não esconde sua empolgação quanto a
isso:
En total, se podrán
administrar aproximadamente 6millones de hectáreas de los bosques de Acre. Esta
cifra incluye 1,5 millones de hectáreas de bosques estatales, 2,7 millones de
hectáreas de bosques de propiedad comunitaria y 1,8 millones de hectáreas propiedad
de individuos o empresas. Los bosques de propiedad estatal aumentarán en 2007 com
la creación de 600.000 hectáreas adicionales. Para 2008 se proyecta una
inversión de 4,8 millones de dólares em el sistema de bosques estatales para
actividades de administración, infraestructura y certificación (...) Em la actualidad
se administran unas 12.000 hectáreas de tierras comunitarias, de las que 1.088
se explotaronen 2005 en 10 distintos proyectos como parte del Programa de
Administración de Bosques Comunitarios coordinado por el gobierno estatal. Se
espera que el área total de bosques administrados aumente considerablemente en
2006 hasta alcanzar un total de 250.000 hectáreas, de las que se explotarán
25.000 (Una
carretera que los ecologistas podrían apreciar).
Esse processo de mercadificação da floresta
se materializou e teve amparo jurídico na Lei 1.426/2001, que instituiu o Sistema
Estadual de Áreas Naturais Protegidas e a Concessão Florestal no estado. Sob a tutela do BID,
forjou-se, por esse expediente, um instrumento legal que possibilita a
exploração privada da floresta e de seus recursos (SOUZA, 2005: 49-50).
O paradoxo desse feito é que as florestas
(habitadas e não habitadas) são, num primeiro momento, transformadas em
públicas para, em seguida, serem privatizadas. Assim, a floresta é pública no
nome e privada em sua exploração e apropriação (SOUZA, 2007: 110). Alquimia tão
fantástica quanto perversa, transformar público em privado.
No rastro da referida lei, foram criadas as
Florestas Públicas Estaduais do Mogno, Liberdade e Gregório. Embora criada
antes, a Floresta Estadual do Antimary foi submetida à mesma lógica. Ela foi
criada através do Decreto nº 46, do Governo do Estado do Acre, de 07/02/1997,
sendo classificada como Unidade de Conservação de Uso Sustentável e ocupa 0,28% da área do Estado.
A Floresta
Pública Estadual do Rio Liberdade ocupa 0,47%
da área do Estado, a do Rio Gregório 1,32%
e a do Mogno 0,88%. Estas foram criadas, respectivamente, através dos Decretos nº
9.716, nº 9.717 e nº 9.718 de 09/04/2004.
Juntas, estas formam o Complexo de Florestas na Regional Envira/Tarauacá,
situado em um dos trechos da estrada a serem concluídos, entre os municípios de
Taraucá e Cruzeiro do Sul. Situadas às margens da BR-364, todas elas,
como reivindicavam os grupos subalternos, mas já sob uma lógica contrária à que
eles aspiravam.
Ainda no sentido de mercadificação da
floresta, concorrem duas outras experiências: os PAFs (Projetos de Assentamento
Florestais) e as Flonas (Florestas Nacionais). Os PAFs foram criados para
“exploração privada de madeira em larga escala nas terras públicas. No Plano
Regional de Reforma Agrária do Acre (2004-2007), estava prevista a destinação
de cerca de 400 mil ha de florestas para implantação desses projetos” (PAULA,
2006: 126-127). Duas Flonas foram
criadas no estado: a do Macauã e a do São Francisco. Ambas estão localizadas no
município de Sena Madureira, que é perpassado pela BR-364.
Por este prisma, podemos concluir com Paula (2006: 127): “a incorporação
de uma grande parcela do território acreano ao patrimônio público – na forma de
‘unidades de conservação’ – não significa necessariamente um avanço na reversão
da insustentabilidade do estilo de ‘modernização’ desencadeado na década de
1970”.
Concluímos ainda que, se RESEX foram criadas ao longo da estrada, não
foi para proteger a floresta da espoliação, mas para – cruel ironia! – torná-la
ainda mais acessível ao capital. Isso porque conservação tornou-se, nestas
paragens, sinônimo de mercadificação e privatização da floresta. Dessa forma,
antes mesmo de concluída a estrada, já o capital conforma nova
territorialização.
Mais espoliação...
Para colocar a floresta nas mãos do capital, porém, é preciso tirá-la
das mãos – ou de sob os pés – de seus verdadeiros donos. Como David Harvey
(2004) demonstrou a partir da observação da história do capitalismo, a lógica
de acumulação do capital avança por espoliação.
Por isso, aos governantes que aceitam com docilidade o papel
de servos zelosos do capital, não restará outra coisa senão conduzir o Estado
de forma autoritária e contra aqueles que se colocam como obstáculos ao poder
mais alienante que a humanidade já conheceu. Embora de forma diferenciada, ao
“Estado democrático” competirá a mesma tarefa do Estado militar. A ele caberá
privar as populações locais de seus territórios (desterritorialização),
preparando o terreno para a apropriação capitalista.
Ao longo do trecho da BR-364 onde se situa o Complexo Estadual
de Florestas Públicas, além da forte presença de especuladores, já é possível
perceber um tipo de desterritorialização. Diferente da ocorrida nas décadas de
1970-80, é verdade, mas nem por isso menos perversa. Mesmo que não
prescinda da expulsão, agora, a “limpeza territorial” se faz, também, com os
homens na terra (SOUZA e PAULA, 2008b). Ainda
que permaneçam na terra, já não a podem usar segundo seu ancestral modo de
vida.
Os recursos de que o Estado lança mão neste intuito são
muitos e variados: desde a restrição e/ou a criminalização das práticas do
“roçado”, do plantio, do corte de árvores para uso doméstico, passando pelo
assistencialismo, até à expulsão de fato.
Constrangidos por todos os lados, quer pelo consenso, quer
pela coação, pequenos agricultores e seringueiros são impelidos a se tornar manejadores
florestais, isto é, vendedores de árvores. Dessa forma, a espoliação
lhes chega até a alma, embotando-lhes a identidade[6].
Diante disso, tornam-se compreensíveis os motivos pelos quais
os representantes do BID se surpreendem – sem sobressaltos – com o fato de os
moradores das florestas estaduais permanecerem nelas: “Ter
este caso Acre trata también de hacer algo innovador. Ter general, la primera tarea
del administrador forestales sacar fuera a los residentes del lugar, como ter
agricultor haría al limpiar sus campos
de malas hierbas” (Una carretera que los
ecologistas podrían apreciar).
Forçoso é dizer que a permanência ou não desses homens nas
florestas públicas é coisa que, no mais das vezes, se lhes foge das mãos. Se
houver necessidade da parte dos gestores estatais e do capital, e escassear a
resistência por parte deles, sua saída é coisa certa. Citando o Relatório de
Atividades Governamentais, Maia (2008: 7) lembra que, em 2005, eram muitas as
dúvidas entre técnicos e moradores a respeito do que seria feito com as
comunidades que estavam sendo retiradas das florestas públicas às margens da
BR-364.
Apesar da confusão quanto ao destino dos moradores e de não
haver um Plano de Manejo aprovado, “pequenos produtores afirmaram que há
pessoas trabalhando no interior da floresta ‘emplacando’ algumas árvores que,
segundo a experiência dos produtores, seriam aptas para corte”.
Como
as populações locais, também a floresta sofre os impactos dessa política. O
resultado de uma pesquisa (Dinâmica do
Desmatamento no Estado do Acre: 1988-2004) encomendada pelo próprio governo
ao Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) dá-nos disso uma
ideia.
A
pesquisa concluiu que o desmatamento bruto no Acre passou de 6.149 km2
em 1988 para 16.618 km2 em 2004. A perda anual média seria de 650 km2
de florestas por ano neste período. No período 1994-1999 o incremento anual de
desmatamento ficou em torno da média deste período (654 km2/ano). A
partir do ano 2000, porém, observa-se um aumento de 34% no incremento anual
médio do desmatamento, algo equivalente a 878 km2/ano. Ao que
parece, o manejo mostrou-se tão hostil à floresta quanto o boi.
Quando os números desse estudo vieram à luz,
o ex-governador Jorge Viana se apressou em defender o manejo e culpar pequenos
agricultores. “O manejo não pode pagar essa conta. O que ocorreu foi um grande
financiamento para pequenos agricultores, que investiram em seus roçados”.
Interessa notar que essa crença no manejo não é partilhada por todos os membros
do governo.
Ainda que ardoroso defensor do modelo, quando
indagado sobre o manejo, Anselmo Forneck (Superintende do IBAMA – Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) respondeu: “E
quanto ao manejo, o manejo, eu sempre digo: é uma incógnita, ainda. É uma
atividade econômica em curso há muito pouco tempo e eu acho que é muito
prematura uma opinião fechada em relação a este assunto (sic).” E concluía:
“[...] a gente está correndo o risco de ter concentração fundiária e financeira
através dos grandes projetos de manejo”.
Vale lembrar ainda que, de acordo com
levantamento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a conclusão da BR-364
afetará 26 Tis, 10 diretamente e 16 indiretamente.
BR-317: corredor de
exportação... e espoliação
A
BR-317 ou Rodovia Interoceânica, por sua vez, impacta diretamente 7 Tis dos
povos Manchineri e Jaminawa. Destas, duas estão definidas e cinco por definir.
Sendo, no mínimo, 33 Tis impactadas pelas estradas, compreende-se o porquê de
ainda restarem 17 Tis a homologar no estado e de o governo não realizar e/ou
divulgar os relatórios dos impactos que sobre todas elas incidirão.
Não
se trata apenas de questão estadual.
É coisa maior, mais complexa, que só fica clara à medida que se compreende que
a BR-317 é uma das principais órbitas da disputa hegemônica que diversos países
travam para controle da Amazônia continental e da América do Sul.
É
corrente entre alguns autores a tese de que a conclusão dessa estrada contraria
interesses dos EUA, debilitando sua hegemonia no campo do comércio marítimo e
do controle sobre os recursos naturais nessa parte da Amazônia. De fato, a
integração convém a alguns países do Leste Asiático que, assim, teriam acesso a
recursos naturais indispensáveis a sua indústria.
A
diminuição dos gastos, tempo e distância em relação àquele mercado em expansão
interessa também aos centros produtivos brasileiros. Acolhida como rota dileta
para o mercado asiático, pensa-se ainda que a BR-317 teria todo seu trajeto
florido com as sementes do desenvolvimento que o comércio que por aí passasse
deixaria cair.
A
tese supra, porém, ignora ou – no melhor dos casos – subestima as estratégias (consenso
e coação, territorial e capitalista) e os sujeitos
(agentes das sociedades civil e política, de dimensões locais, regionais,
nacionais, continentais e planetárias) envolvidos na luta pelo domínio
territorial na região.
A
isso levantamos três objeções. Objeção 1) A conclusão dessa estrada faz parte
do Eixo Peru-Brasil-Bolívia da Iniciativa para a Integração
das Infraestruturas Regionais Sul-Americana (IIRSA), um megaprojeto
desenhado pelos EUA para controle geopolítico de toda a América do Sul (CECENÃ
et al, 2007: 9). Ele se assenta em dois documentos do BID: O Plano de Ação para a Integração da
Infraestrutura da América do Sul e Um
nuevo impulso a La integración regional em America Del Sur.
Dentre
outras coisas, o projeto visa à dilapidação da soberania dos países da região e
à abertura para a exploração/apropriação de seus recursos naturais por parte do
grande capital (SOUZA, 2007b: 11). Decerto teríamos, sim, uma América do Sul
integrada. Mas, ao que tudo indica: 1) forjada segundo interesses econômicos de
grandes empresas; e 2) sob aprofundamento e atualização de sua condição de
celeiro de bens naturais do centro desenvolvido.
Objeção
2) Em 2006, com o programa Iniciativa para a Conservação da Bacia
Amazônica (ICBA), os EUA tornaram mais clara e programática sua
intenção de controlar a região amazônica. Através dele, as Agências Norte-Americanas para
o Desenvolvimento Internacional (USAID) financiariam cinco
consórcios para, sob seu controle, atuarem em áreas estratégicas da Bacia
Amazônica, realizando pesquisas e levantamentos sobre os recursos naturais
presentes na região e influenciando na criação de políticas conservacionistas. Valor
do financiamento: 65 milhões.
Entre
os consórcios, encontra-se o Governança Ambiental na Região MAP,
composto por instituições das sociedades civil e política. Suas áreas de
atuação situam-se ao longo das BRs 317 e 364, próximas às reservas extrativistas,
e nas áreas centrais para a política ambiental acreana. Ressalte-se que o
consórcio atuaria numa fronteira trinacional (Acre/Brasil, Madre de Dios/Peru e
Pando/Bolívia) que é considerada um dos dez pontos mais ricos em biodiversidade
do planeta (SOUZA, 2007a; SOUZA e PAULA, 2008a e 2008b).
Objeção
3) No final de 2008, o Estado do Acre, através do Programa Integrado de
Desenvolvimento Sustentável do Acre (ProAcre), firmou contrato de
150 milhões com o BM – 120 milhões do banco e 30 milhões de contrapartida
local. Com previsão de duração de seis anos, o programa tem como foco de ação
as margens das BRs 364 e 317 (tratadas, agora, como Zonas Especiais de Desenvolvimento
– ZEDs) e pretende melhorar a qualidade de vida das comunidades mais distantes
dos centros urbanos, levando-lhes saúde, educação e produção – coisa necessária
louvável.
Mas,
não casualmente, o programa pretende também promover o “ordenamento ou
adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades
de Conservação, Terras Indígenas e projetos de assentamento” – coisa discutível
e perigosa. Sob os cânones (conservacionistas, mercantilistas, privatizantes,
colonizadores) do BM, isso concorre para o aprofundamento da subordinação do
Estado às instituições financeiras internacionais, para a promoção da
territorialidade do capital e do desmantelando da territorialidade do homem da
floresta. O resultado é uma reconfiguração territorial ainda maior e mais
perversa que a que temos assistido até agora.
Dessa forma, a questão ambiental, que antes
fora pedra de tropeço para a espoliação capitalista na região, hoje lhe serve
como uma espécie de preparação de terreno. O Estado, em cujas mãos os grupos
subalternos depositaram a tarefa de reverter o processo espoliador através das
RESEX, é hoje um de seus principais indutores. O Acre tornou-se um estado de
discurso verde e prática cinza.
Mesmo reconhecendo a luta hegemônica à qual
estão sujeitos tais projetos e instituições (como o BID), fica patente que a
integração via BR-317 não só não contraria – necessariamente – interesses dos
EUA como conta entre seus planos para a região e o continente. Ainda através
dela, eles buscam controlar o uso e a gestão dos recursos naturais aí
abundantes.
Considerações
finais
Não resta dúvida sobre o fato de que as
estradas aqui em foco tenham aspectos positivos, como permitir que as
populações do interior tenham acesso aos centros urbanos e aos serviços que -
ainda que, em geral, precários - estes oferecem.
Destacamos, entretanto, que o conjunto de
tudo o que vimos acima nos desautoriza tomá-las: como coroação da luta “dos de baixo” e afirmação de sua
territorialidade; como promotoras do desenvolvimento e da conservação
florestal; e, no que tange à BR-317, como mero corredor de exportação e
contrária aos interesses estadunidenses.
Como
vimos, essas estradas têm concorrido para desenhar e consolidar uma geopolítica
alheia e avessa aos subalternos da região, planejada da escala local à
continental por instituições financeiras estrangeiras e posta em marcha com
esmero e entusiasmo por Estados da região.
No
caso do Acre, a conformação dessa geopolítica é justificada na ideologia do
“desenvolvimento sustentável” e amparada pela política ambiental. A esta
compete abrir caminho jurídico ao capital, mercantilizar e privatizar os
recursos naturais, desterritorializar (pelo consenso e/ou pela coação) o homem
da floresta e embotar-lhe a identidade. O desrespeito às Tis é pressuposto e
resultado do projeto. Após o terreno assim preparado, as estradas abrem o
caminho físico, dando ao capital livre acesso às riquezas naturais.
Por
isso, malgrado tanto otimismo e confusão em torno das BRs 364 e 317, até aqui
elas se têm configurado como corredores de espoliação, apenas mais duas veias
abertas na América Latina.
Referência
bibliográfica
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III milênio. Rio de Janeiro: Gamond (2007).
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discursos e interesses em torno da Rodovia Interoceânica Brasil/Peru.
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Acesso setembro de 2010.
[1] Trata-se de uma
versão, ligeiramente modificada, do trabalho intitulado Ambientalismo e geopolítica na Amazônia-Acreana: da criação das RESEX
aos corredores da espoliação, apresentado no XIV Congresso Brasileiro de
Sociologia no Rio de Janeiro, 2009. É um dos vários artigos que compõem o livro
Democracia no Acre: notícias de uma
ausência.
[2] Graduado em Ciência
Política e Mestre em Desenvolvimento Regional
pela Universidade Federal do Acre-UFAC/Brasil, membro do Núcleo de Pesquisa
Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO).
E-mail: israelpolitica@gmail.com
[3] Hoje, de um modo um tanto singular, o
governo afirma que a estrada está “concluída”. As aspas aqui se justificam em
razão de haver quem diga que ela nunca chegou a ser totalmente asfaltada. Além
do mais, nos últimos dias, o próprio governo começou a veicular uma propaganda
segundo a qual haveria de “concluir e cuidar” da estrada. Todavia, como
concluir algo já concluído?
[4] Com o fim da Guerra
Fria e a abertura do regime pós-ditatorial no Brasil, não teria muito sentido
manter o eixo segurança.
[5] Mesmo com a abertura da estrada, são
indispensáveis os ramais. Até agora o governo tem negligenciado uns em
benefício de outros. Estes, os mais centrais para sua política ambiental
mercantilista.
[6] Esse foi um dos resultados a que chegou pesquisa
recente sobre a Floresta Estadual do Antimary: FONSECA (2008). Os resultados da pesquisa são: 1) os habitantes da
Floresta Estadual do Antimary não reconhecem como benefícios as mudanças
advindas do manejo florestal empresarial que culminou com a certificação; 2) O
manejo florestal empresarial da FEA criou um novo elemento entre as populações
tradicionais: os vendedores de árvores; e 3) os vendedores de árvores são desprovidos do conceito de
sustentabilidade, que inspirou a criação da certificação florestal no mundo.
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