quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ambientalismo e geopolítica: da criação das RESEX aos corredores da espoliação[1]


Israel Souza[2]
Em seu período de governo, os militares colocaram em marcha um conjunto de políticas voltadas para a “integração da Amazônia” ao novo processo de acumulação capitalista em curso no país. Sob o clima da Guerra Fria e da febre da “modernização”, três eram os eixos dessas políticas: segurança, desenvolvimento e integração.
Três eram os eixos, e três também as justificativas em que se assentava o projeto dos militares: 1) evitar a inserção do “inimigo externo” (comunismo) em território brasileiro pela selva; 2) promover a valorização deste “mundo perdido”; e 3) “integrar” esta imensa e rica região ao resto do Brasil.
Juntos, esses eixos formaram uma espécie de tripé em que se alicerçou ideológica e estrategicamente o projeto dos militares para a Amazônia. A crença depositada nessa estratégia pode ser verificada no lema adotado pela Escola Superior de Guerra e na celebridade do trocadilho que virou slogan: Segurança e Desenvolvimento e Integrar para não entregar, respectivamente.
Em certo sentido, pode-se mesmo dizer que a integração fez as vezes de ponte entre o desenvolvimento e a segurança. Claro. Contaram também outros fatores para a consubstanciação dessa proposta integracionista, como a possibilidade de multinacionais automobilísticas instalarem-se em solo brasileiro. Cunha lembra que

[...] para atender às exigências das instalações das multinacionais automobilísticas [...] os governos militares não hesitaram em priorizar a construção de várias estradas, inclusive em trechos extremamente complexos, devido às dificuldades geomorfológicas [...] (CUNHA, 2009: 14).

Entre essas estradas, destacam-se as BRs 230 (Rodovia Transamazônica), 163 (Cuiabá-Santarém), 364 (Cuiabá-Porto Velho) e a 317 ou, como também é conhecida, a Rodovia Interoceânica.
Para a construção de seus eixos viários, o Brasil contou com um generoso empréstimo da parte do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (BM). Empréstimo que chegou à soma de 400 milhões de dólares, “o maior empréstimo já feito a um país para construção de estradas” (LINHARES apud PAULA, 2006: 108).
Dessa forma, os militares criaram as condições para a expansão do grande capital na Amazônia, além de certo alívio para as “tensões sociais internas decorrentes da expulsão de pequenos produtores do Nordeste e do Sudeste pela modernização da agricultura” (BECKER, 2007: 26).
Entretanto, a adoção de tais políticas resultou em destruição ambiental, expulsão e/ou extermínio de significativas frações das populações indígenas e camponesas. De outro lado, o dúbio nacionalismo militar não só não impediu como mesmo estimulou através de incentivos da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) a implantação de projetos estrangeiros.
Além disso, ao fim deste período (1964-1986), destaca Cunha (2009: 56), podiam-se contar 2.642 projetos financiados pela Sudam. Destes, 1.202 (29%) foram destinados à pecuária extensiva de corte, 682 (16%) para a indústria madeireira, 483 (12%) para a agroindústria e 275 (7%) para a agropecuária.
Esses financiamentos, imagem perfeita do tipo de desenvolvimento pretendido para a região, fizeram crescer em paralelo e ritmo assustador a concentração fundiária e os conflitos dela resultantes. Neste particular, o Acre, onde a substituição do extrativismo pela pecuária extensiva de corte, aliada à grande propriedade fundiária, consistiu no eixo central da modernização (PAULA: 2006), desponta como caso emblemático.
Fiel às orientações vindas do poder central, o governo Wanderley Dantas (1971-1974) clamava em retumbante tom: “O Acre, a nova Canaã. Um Nordeste sem seca, um Sul sem geada”. E ainda: “Venha produzir no Acre, investir no Acre e exportar pelo Pacifico”. Os que estavam à procura de oportunidades de lucro não usaram de cerimônia para aceitar o convite.
Segundo Cunha (2009: 64), enquanto o percentual médio de crescimento da pecuária no país, entre 1970 e 1980, foi de 151%, a média da região Norte foi de 216%. Durante esse mesmo período no estado, em que o Banco do Estado do Acre (BANACRE) disponibilizou várias linhas de créditos, o rebanho bovino saiu de 72 mil para 298 mil cabeças. Alcançando um crescimento de 413%. Com isso, já em 1978, “cerca de um terço das terras cadastradas no INCRA encontrava-se sob domínio de investidores do Centro-Sul, em sua maioria oriundos do estado de São Paulo” (PAULA, 2006: 108).
Não foram poucos os impactos desta concentração, posto que “72% da população do estado vivia no campo e que 85,3% das famílias ocupadas no setor primário não eram proprietárias das terras que cultivavam” (PAULA, 2006: 110). Num mesmo e único processo, cresceram pecuária, concentração fundiária... e conflitos. Isso vai marcar, sob a forma da violência, a luta pela reconfiguração territorial por que passa o estado nessas décadas.
Objetivando lidar com a pecuária ou simplesmente especular no mercado fundiário, os novos donos teriam que fazer nestas terras uma dupla “limpeza”, cujos impactos foram enormes: 1) tinham que “livrá-las” dos sujeitos que aí habitavam, isto é, dos índios, dos seringueiros e demais “posseiros”; e, só então, 2) derrubar a floresta, abrindo espaço para a plantação dos pastos necessários à criação do gado.
Nesse cenário,

[...] os moradores da floresta – os seringueiros – veem seus territórios de vivência serem ameaçados e eles prestes a serem “desterritorializados” (expulsos e violentados pelas desapropriações, fosse por via indenizatória, ou pela ação física direta lhes excluindo da terra). Daí, as condições que emergem de acirramento das contradições postas pelo “chamado processo modernizante” do país, em que a luta de classes estará no centro de todo o processo de produção deste espaço. Tem-se, então, uma década (1970) em que ocorre o início da organização da luta, no despertar para a resistência, perante a violência suscitada (SILVA, 2006: 136).

Da resistência à criação das RESEX

É nesse contexto que surge o Movimento dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais do Acre (MSTR), fazendo-se o principal protagonista da resistência a esse processo. Suas estratégias de luta eram variadas, desde o confronto físico direto, passando pela plantação de roçados, até às demandas judiciais. Entre estas, uma tornou-se marca de suas lutas: o “empate”.
O “empate” consistia em defender a área florestal que estava sendo ou prestes a ser desmatada, abraçando-se às árvores. A estratégia rendeu vitórias ao movimento. Considerada em seu aspecto extremado, ela pode ser também interpretada como um sinal da intensificação dos conflitos e do aumento das mortes (tanto do lado dos seringueiros quanto do lado dos fazendeiros) que marcarão a década de 1980. 
            No ano 1982, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Xapuri, sob a liderança de Chico Mendes, se lança na formulação de uma proposta original de reforma agrária. “Há uma necessidade grande e urgente”, dizia o seringueiro socialista (Chico Mendes) em entrevista dada a Costa Sobrinho (2006), “de se evitar o desmatamento da Amazônia [...] Pensamos em criar uma alternativa de preservação sem tornar a Amazônia um santuário intocável, mas garantindo a sobrevivência com dignidade dos que vivem na floresta”.
Nascia aí a proposta das RESEX, consideradas a “reforma agrária do seringueiro”, porque afirmavam a territorialidade própria do seringueiro e do homem da floresta, o domínio das populações locais sobre seus territórios e recursos, o valor e os saberes do homem da floresta contra o capital.
Como os “empates”, essa proposta revelava o intuito de impor limites ao capital e de “empatar” (barrar) a “modernização” nestas paragens. Criadas através do Decreto-lei Presidencial n° 98.987/90, as RESEX destacam-se, dentre outras coisas, pela defesa: 1) de que a terra e a natureza deixassem de estar subordinadas aos interesses imediatos de capitais privados e passassem a ser bem público; 2) que sua utilização incorporasse demandas sociais das populações da região cujos saberes deveriam servir de elemento orientador de políticas públicas destinadas à elevação dos níveis sociais de vida e renda de forma compatível com a conservação da paisagem natural.
Na formulação inicial das RESEX, somam-se aos elementos acima expostos dois outros, também eles dignos de nota: 3) o proeminente papel atribuído ao Estado, considerado a “referência central para a reversão do modelo então em curso” (PAULA, 2006: 119); e 4) o descarte da exploração de madeira para fins de comércio (PAULA, 2005).
Com a criação em 1985 do Conselho Nacional do Seringueiro (CNS), a luta dos trabalhadores rurais pela preservação da floresta em pé – do que dependia sua sobrevivência – tomou maior dimensão e atraiu o favor das opiniões públicas nacional e internacional.
Vem daí a “interpretação clorofilada” que lhes impingiram as ONGs e o movimento ambientalista, parceiros de que passaram a gozar de certo apreço e apoio. Mesmo com discordâncias de modo nenhum diminutas, os ambientalistas foram fundamentais na discussão das BRs 364 e 317.

As RESEX contra as estradas

Costa Sobrinho (2006: 15) destaca que na “região dos vales dos rios Acre e Purus, quase sempre seguindo os traçados estratégicos das BRs 364 e 317, e também AC-40, as terras alienadas foram ocupadas pelos novos proprietários”. Não é estranho assim que contemos ao longo da BR-317, entre outros, os assassinatos do fazendeiro Nilo Sérgio e do sindicalista Ivair Higino.
            Por isso, era constante a preocupação dos seringueiros com o asfaltamento das BRs. Já Chico Mendes, atento a isso, dizia:

O asfaltamento da BR-364 também foi discutido por mim na Comissão de Operação de Verbas do Senado Americano. Denunciamos a destruição da floresta, os impactos ambientais causados pelo asfaltamento da estrada no trecho Cuiabá-Porto Velho. Falei que, se a intenção era levar desenvolvimento para os povos daquela região, o que ocorreu foi exatamente o contrário. A estrada serviu para beneficiar meia dúzia de latifundiários e arruinar a vida de milhares de trabalhadores.

            A observação do seringueiro socialista torna-se ainda mais pertinente quando se toma em consideração o fato de que, no ano de 1985, o Brasil contraiu um empréstimo de 146,7 milhões do BID (CUNHA, 2009: 68), para pavimentar o trecho da BR-364 que ligava Porto Velho (RO) a Rio Branco (AC). Devido aos desastrosos impactos, causados pelo asfaltamento do trecho Cuiabá-Porto Velho, o BM estava sob fortes críticas. Críticas que podiam ser estendidas ao BID, caso continuasse com o intento de financiar o asfaltamento do trecho Porto Velho-Rio Branco. Diante disso, o BID exigiu que o governo brasileiro tomasse medidas de mitigação dos impactos sociais e ambientais.
Como resposta, é criado o Programa de Proteção ao Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas (PMACI). Este não passou de uma forma de o governo brasileiro assegurar o recebimento do empréstimo. De tudo o que lá se discutia e decidia, estavam excluídos seringueiros, demais trabalhadores rurais, e indígenas. Após várias tentativas de diálogo, o CNS encabeça a crítica ao programa, lançando uma nota que muito diz a respeito do posicionamento dos “povos da floresta” em relação à estrada. Eles, então, reivindicavam:

1.    Que as obras da estrada sejam paralisadas até serem tomadas medidas concretas que garantam aos seringueiros a segurança das áreas nas quais vivem. 2. Que sejam criadas Reservas Extrativistas em toda a área de influência da BR-364, nas quais predominem as atividades extrativistas, antes que seja asfaltada a estrada. 3. Que os órgãos governamentais entendam que proteção ambiental na Amazônia significa garantia da preservação da floresta para aqueles que vivem nela sem destruí-la, ou seja, os índios e os seringueiros.

            Observamos, pela nota acima, que as RESEX são sugeridas como uma espécie de contraponto à estrada – uma forma de proteção da floresta e de seus moradores contra os impactos que poderiam vir em seu rastro – e que a floresta deveria ser preservada em benefício daqueles que nela vivem e dela cuidam. E a exploração de madeira para fins comerciais não conta entre as atividades extrativistas que deveriam predominar ao longo da estrada.
Não resistindo às pressões, o BID recuou e suspendeu o financiamento da obra. Pode-se dizer que, naquele momento de intensa preocupação com os desastres ecológicos nos cenários nacional e internacional, a questão ambiental foi um obstáculo à modernização capitalista na região. Para isso, ao lado das justas reivindicações e da grande força de mobilização e resistência dos seringueiros, foi determinante a interpretação clorofilada que fizeram de sua luta. A questão ambiental foi, assim, um elemento que, inteligentemente captado, lhes permitiu explorar o caráter premente e universal de suas causas.

A inversão do processo

Passados os anos de chumbo, o projeto de construção das estradas seguirá com a abertura do regime pós-ditatorial. Com recursos próprios, o governo brasileiro conseguiu asfaltar o trecho Porto Velho-Rio Branco. Mas, uma vez chegada à capital acreana, a estrada segue cortando o estado de ponta a ponta, rumo a Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do estado.
A ligação com o Pacífico teria ainda que esperar pelo asfaltamento da BR-317. Esta, sim, cortando o Acre, passando pelo Peru, faria enfim a ligação com aquele Oceano e com o promissor mercado do Leste Asiático, situado às margens do lado de lá.
Coincidindo com o processo de “reformas” do Estado, esta abertura marcará, além do abandono da inserção da Amazônia em um projeto nacional de desenvolvimento, um reordenamento nas relações de poder entre “sociedade civil” e sociedade política. Isto implicou, dentre outras coisas, a transferência de algumas atribuições desta para aquela e colocou, no lugar do Estado, o mercado como referência central para o desenvolvimento.
Como esta redefinição do papel do Estado será acompanhada por certa “relativização” das fronteiras nacionais, o sentido de geopolítica e os sujeitos que a “desenham” serão também redefinidos. Antes, a geopolítica era pensada, sobretudo, no sentido de conquista/ocupação e apropriação de territórios e recursos. E seu principal autor era o Estado (em sentido restrito). O slogan Integrar para não entregar, dos militares, está em plena consonância com esta percepção.
Com o período que se abre, tão importante quanto conquistar/ocupar torna-se o domínio sobre as percepções e decisões acerca da gestão/uso e apropriação do território e seus recursos. Isto fortalecerá ainda mais os organismos da “sociedade civil” (responsáveis que são pela tessitura da hegemonia) e, sem desprezar as solicitudes estatais, seu papel na formulação de políticas de desenvolvimento e da geopolítica.
Destaca-se, a partir de então, a atuação de ONGs e agências multilaterais na região, como BID e BM, que, aproveitando-se das lacunas deixadas por instituições federais (como a Sudam) e a descentralização administrativa, passam a realizar investimentos e a gerenciar projetos setoriais de “desenvolvimento sustentável”.
O BM, tutelando o Estado e tomando a dianteira de movimentos sociais e ambientalistas diversos, se apressou em estabelecer um marco conceitual sobre “desenvolvimento sustentável” nos termos mais aceitáveis ao capital (PAULA, 2005). Assim, aliado ao seu já velho e conhecido poder político/técnico/financeiro, o consenso criado por esta instituição em torno desse conceito mostrou-se extremamente eficaz em influenciar políticas de desenvolvimento e em mercadificar bens naturais.
Tudo isso marca o novo cenário em que o projeto de conclusão das BRs 364 e 317 continua. No trecho acreano, a 317 já foi concluída. Da 364, restam dois trechos. O primeiro liga Sena Madureira a Feijó; o segundo, Tarauacá a Cruzeiro do Sul. Ambos, já em andamento, estão incluídos entre as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o estado. A previsão de conclusão era 2011[3].
Todavia, a darmos fé à interpretação hegemônica sobre o processo em curso no Acre, parece já não haver motivos para preocupações com as estradas. Os tempos agora seriam outros, mais favoráveis. É amplo o consenso segundo o qual, com a chegada da FPA ao poder estatal no ano de 1999, foram tomadas iniciativas relevantes para a indução de um “novo projeto” de desenvolvimento. Projeto celebrado como primor de harmonia entre desenvolvimento econômico e preservação da floresta e do modo de vida de seus habitantes.
Supostamente, haveria uma comunhão de valores e práticas entre as lutas de resistência à expansão predatória do capitalismo na Amazônia-acreana durante as décadas de 1970/80 e as ações governamentais do pós-1998. Estas, coroação daquelas. Com isso, o movimento, que inteligentemente havia captado em seu favor a questão ambiental, agora se vê refém da interpretação clorofilada que dele fizeram. Castraram o conteúdo subversivo de sua luta, e seu suposto ambientalismo ganhou status de política estatal.
A despeito disso, pensa-se, desde 1999 o Estado passou a representar uma estratégia de “desenvolvimento sustentável”; e os grupos subalternos, agora assistidos, teriam acesso aos ativos econômicos necessários a um digno padrão de vida. Essas expectativas assentam-se no Plano de Desenvolvimento Sustentável, financiado pelo BID. Seu objetivo: “mejorar la calidad de vida de la población y preservar el patrimônio natural del Estado de Acre em el largo plazo.”
O plano é constituído de três componentes: 1) manejo sustentável e conservação dos recursos naturais; 2) apoio e fomento do desenvolvimento produtivo sustentável e do emprego; e 3) infraestrutura pública do desenvolvimento. Amparado, o governo pavimentou algumas rodovias, como a BR-317, até o município de Assis Brasil, o trecho Feijó-Tarauacá da BR-364, bem como a estrada que liga o município de Xapuri à BR-317 (SOUZA, 2005).
Como se vê, excetuando-se a segurança, dois (desenvolvimento e integração) dos três eixos que compunham a estratégia de modernização dos militares para a Amazônia permanecem em cena[4]. Então, hoje, qual o significado das estradas?
Sem embargo, pode-se dizer que tão grande quanto os interesses é a confusão que as estradas suscitam. Tais são os pontos que norteiam as interpretações correntes a seu respeito: BR-364: 1) integra o estado e tira as populações locais do isolamento; 2) promove o desenvolvimento, reafirmando a territorialidade dos grupos subalternos e conservando a floresta. BR-317: 1) reafirma a territorialidade dos grupos subalternos e conserva a floresta; 2) promove a integração sul-americana e o desenvolvimento local-regional-nacional-continental; 3) sua conclusão contraria os interesses dos EUA na região; e 4), apesar de importante, ela é apenas um corredor de exportação.
Por uma questão de metodologia e de clareza expositiva, abordaremos, no que for possível, as estradas em separado. Começando com a BR-364, passando pela BR-317, tomando em conta os pontos acima elencados e daí extraindo implicações mais gerais. Esta separação é assumida no intento de melhor apresentar o problema, pois, como veremos, as duas estradas se inscrevem no mesmo quadro da política ambiental acreana e, juntas, desenham uma geopolítica alheia aos interesses dos grupos subalternos da região. A política ambiental acreana é, nesse plano, resultado e agente dessa geopolítica.

BR-364: política ambiental... e espoliação

Embora não se possa dizer que a BR-364 tirará as populações locais do isolamento[5], não resta dúvida sobre seu físico caráter integrador. Por isso, nosso foco será o segundo ponto, marcado por uma suposta harmonização entre desenvolvimento, territorialidade dos grupos subalternos e conservação da floresta.
O que teria possibilitado esta suposta harmonização?, perguntamos. De acordo com a interpretação hegemônica, a adoção do novo modelo de desenvolvimento e sua fina sensibilidade para com as questões ambientais – ausentes no projeto dos militares -, respondem.
Como que por derivação mecânica, daí teria resultado uma inversão quanto aos efeitos das estradas. Antes, estas foram consideradas um perigo para a floresta. Agora, são consideradas salvação. Ou melhor, a única salvação possível. “Hemos dicho que la única manera de que la administración forestal sea viable es crear infraestructura de transporte confiable”(La Amazonía del mañana), disse um dos representantes do governo da FPA ao solicitar empréstimo do BID.
A isto, o banco respondeu “com la aprobación de um préstamo por 64,8 millones de dólares para el proyecto de pavimentación”. Trata-se do Contrato de Empréstimo BID 1399/OC-BR para implantação do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre. O valor é de 108 milhões de dólares, dos quais 64,8 milhões do BID e 43,2 milhões de contrapartida local. Este empréstimo resultou num processo de reconfiguração territorial de grande magnitude, pois, ainda que referenciado na BR-364, a área geográfica do Programa compreende todo o território do estado.
Derivaram-se daí “normas de protección de la selva lindante com la carretera por medio de medidas entre las que se cuenta la creación de parques estatales” e a implementação de “ter conjunto de proyectos para conservar y administrar los recursos naturales, desarrollar industrias que aporten valor a estos recursos, y pavimentar ter segmento de 70 kilómetros de la BR-364”.
Tomadas estas iniciativas, pensa-se, já não haveria perigos a correr com a estrada. Até mesmo RESEX foram criadas às suas margens, aparentemente, atendendo às reivindicações e aos interesses “dos de baixo”. Uma análise da política ambiental do governo mostrar-nos-á que a percepção sobre a estrada pode – pelo menos, para alguns – até ter mudado, mas não seus efeitos. O monstro não sumiu. Disfarça-se de médico.
Por certo, elementos outros há que dão certa solidez à interpretação de que a política ambiental em curso no estado superou os problemas agrários e pôs fim aos impactos antiecológicos do asfaltamento das estradas. Com base em Paula (2006: 122-123), destacamos três desses elementos: 1) o relevante acesso dos grupos subalternos a terra; 2) diminuição no número de grandes propriedades fundiárias (a percentagem dos imóveis superiores a 1000 ha caiu de 73% para 20% da área total do território acreano); e 3) criação de outras modalidades de regularização, como Terras Indígenas (Tis), Unidades de Conservação Integral e de Uso Sustentável, que, juntas, ocupam aproximadamente 50% do território do Acre.
É preciso não pouca cautela para evitar deslumbramentos com tão luminoso cenário. Assim, sem desprezar os avanços, veremos que estas luzes guardam suas sombras. No que tange à questão agrária, é preciso que se diga que, das terras de domínio privado cadastradas no INCRA, temos o seguinte quadro: 85% dos imóveis inferiores a 100 ha ocupam apenas 20,5% do total; por seu turno, 3,24% dos superiores à mesma medida alcançam 70%.  

Mercadificação e privatização da floresta

Com a eleição da FPA, a lógica do mercado passa a dar a tônica das políticas ambientais. A obsessão pelo desenvolvimento centrado na mercantilização dos recursos naturais se instala no Estado (SOUZA, 2005), invertendo importantes reivindicações da luta dos anos de 1970-1980. O sonho socialista cede espaço ao pesadelo capitalista: “[...] hoje nós temos clareza de que o que a gente tem, outras regiões do mundo e do país não têm, e que é possível com o que a gente tem entrar no mercado, na lógica do mercado (grifo nosso) [...]” (OLIVEIRA, 2005: 286).
Como se depreende do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre, a exploração de madeira para fins comerciais é hoje a principal referência do projeto em andamento:

Mais de 90% da área do Acre é composta por cobertura florestal original, o que gera condições para um ordenamento adequado do uso deste patrimônio, baseado na sustentabilidade ambiental, em mecanismos de inclusão social e no crescimento de uma economia florestal forte. Deste total, aproximadamente seis milhões de hectares apresentam aptidão e acessibilidade para a produção florestal sustentada e contínua, representando uma economia florestal potencial de 1 bilhão de dólares/ano com a possibilidade de criação de 5.000 empregos diretos.

Os próprios representantes do governo enaltecem este feito, afirmando que “La explotación de la selva es ya la industria más importante de Acre”. O BID, que encontrou nesse estado o laboratório perfeito para suas experiências, também não esconde sua empolgação quanto a isso:

En total, se podrán administrar aproximadamente 6millones de hectáreas de los bosques de Acre. Esta cifra incluye 1,5 millones de hectáreas de bosques estatales, 2,7 millones de hectáreas de bosques de propiedad comunitaria y 1,8 millones de hectáreas propiedad de individuos o empresas. Los bosques de propiedad estatal aumentarán en 2007 com la creación de 600.000 hectáreas adicionales. Para 2008 se proyecta una inversión de 4,8 millones de dólares em el sistema de bosques estatales para actividades de administración, infraestructura y certificación (...) Em la actualidad se administran unas 12.000 hectáreas de tierras comunitarias, de las que 1.088 se explotaronen 2005 en 10 distintos proyectos como parte del Programa de Administración de Bosques Comunitarios coordinado por el gobierno estatal. Se espera que el área total de bosques administrados aumente considerablemente en 2006 hasta alcanzar un total de 250.000 hectáreas, de las que se explotarán 25.000 (Una carretera que los ecologistas podrían apreciar).


Esse processo de mercadificação da floresta se materializou e teve amparo jurídico na Lei 1.426/2001, que instituiu o Sistema Estadual de Áreas Naturais Protegidas e a Concessão Florestal no estado. Sob a tutela do BID, forjou-se, por esse expediente, um instrumento legal que possibilita a exploração privada da floresta e de seus recursos (SOUZA, 2005: 49-50).
O paradoxo desse feito é que as florestas (habitadas e não habitadas) são, num primeiro momento, transformadas em públicas para, em seguida, serem privatizadas. Assim, a floresta é pública no nome e privada em sua exploração e apropriação (SOUZA, 2007: 110). Alquimia tão fantástica quanto perversa, transformar público em privado.
No rastro da referida lei, foram criadas as Florestas Públicas Estaduais do Mogno, Liberdade e Gregório. Embora criada antes, a Floresta Estadual do Antimary foi submetida à mesma lógica. Ela foi criada através do Decreto nº 46, do Governo do Estado do Acre, de 07/02/1997, sendo classificada como Unidade de Conservação de Uso Sustentável e ocupa 0,28% da área do Estado.
A Floresta Pública Estadual do Rio Liberdade ocupa 0,47% da área do Estado, a do Rio Gregório 1,32% e a do Mogno 0,88%. Estas foram criadas, respectivamente, através dos Decretos nº 9.716, nº 9.717 e nº 9.718 de 09/04/2004. Juntas, estas formam o Complexo de Florestas na Regional Envira/Tarauacá, situado em um dos trechos da estrada a serem concluídos, entre os municípios de Taraucá e Cruzeiro do Sul. Situadas às margens da BR-364, todas elas, como reivindicavam os grupos subalternos, mas já sob uma lógica contrária à que eles aspiravam.
Ainda no sentido de mercadificação da floresta, concorrem duas outras experiências: os PAFs (Projetos de Assentamento Florestais) e as Flonas (Florestas Nacionais). Os PAFs foram criados para “exploração privada de madeira em larga escala nas terras públicas. No Plano Regional de Reforma Agrária do Acre (2004-2007), estava prevista a destinação de cerca de 400 mil ha de florestas para implantação desses projetos” (PAULA, 2006: 126-127). Duas Flonas       foram criadas no estado: a do Macauã e a do São Francisco. Ambas estão localizadas no município de Sena Madureira, que é perpassado pela BR-364.
Por este prisma, podemos concluir com Paula (2006: 127): “a incorporação de uma grande parcela do território acreano ao patrimônio público – na forma de ‘unidades de conservação’ – não significa necessariamente um avanço na reversão da insustentabilidade do estilo de ‘modernização’ desencadeado na década de 1970”.
Concluímos ainda que, se RESEX foram criadas ao longo da estrada, não foi para proteger a floresta da espoliação, mas para – cruel ironia! – torná-la ainda mais acessível ao capital. Isso porque conservação tornou-se, nestas paragens, sinônimo de mercadificação e privatização da floresta. Dessa forma, antes mesmo de concluída a estrada, já o capital conforma nova territorialização.

Mais espoliação...

Para colocar a floresta nas mãos do capital, porém, é preciso tirá-la das mãos – ou de sob os pés – de seus verdadeiros donos. Como David Harvey (2004) demonstrou a partir da observação da história do capitalismo, a lógica de acumulação do capital avança por espoliação.
Por isso, aos governantes que aceitam com docilidade o papel de servos zelosos do capital, não restará outra coisa senão conduzir o Estado de forma autoritária e contra aqueles que se colocam como obstáculos ao poder mais alienante que a humanidade já conheceu. Embora de forma diferenciada, ao “Estado democrático” competirá a mesma tarefa do Estado militar. A ele caberá privar as populações locais de seus territórios (desterritorialização), preparando o terreno para a apropriação capitalista.   
Ao longo do trecho da BR-364 onde se situa o Complexo Estadual de Florestas Públicas, além da forte presença de especuladores, já é possível perceber um tipo de desterritorialização. Diferente da ocorrida nas décadas de 1970-80, é verdade, mas nem por isso menos perversa. Mesmo que não prescinda da expulsão, agora, a “limpeza territorial” se faz, também, com os homens na terra (SOUZA e PAULA, 2008b). Ainda que permaneçam na terra, já não a podem usar segundo seu ancestral modo de vida.
Os recursos de que o Estado lança mão neste intuito são muitos e variados: desde a restrição e/ou a criminalização das práticas do “roçado”, do plantio, do corte de árvores para uso doméstico, passando pelo assistencialismo, até à expulsão de fato.
Constrangidos por todos os lados, quer pelo consenso, quer pela coação, pequenos agricultores e seringueiros são impelidos a se tornar manejadores florestais, isto é, vendedores de árvores. Dessa forma, a espoliação lhes chega até a alma, embotando-lhes a identidade[6].
Diante disso, tornam-se compreensíveis os motivos pelos quais os representantes do BID se surpreendem – sem sobressaltos – com o fato de os moradores das florestas estaduais permanecerem nelas: “Ter este caso Acre trata también de hacer algo innovador. Ter general, la primera tarea del administrador forestales sacar fuera a los residentes del lugar, como ter agricultor haría al limpiar    sus campos de malas hierbas” (Una carretera que los ecologistas podrían apreciar).
Forçoso é dizer que a permanência ou não desses homens nas florestas públicas é coisa que, no mais das vezes, se lhes foge das mãos. Se houver necessidade da parte dos gestores estatais e do capital, e escassear a resistência por parte deles, sua saída é coisa certa. Citando o Relatório de Atividades Governamentais, Maia (2008: 7) lembra que, em 2005, eram muitas as dúvidas entre técnicos e moradores a respeito do que seria feito com as comunidades que estavam sendo retiradas das florestas públicas às margens da BR-364.
Apesar da confusão quanto ao destino dos moradores e de não haver um Plano de Manejo aprovado, “pequenos produtores afirmaram que há pessoas trabalhando no interior da floresta ‘emplacando’ algumas árvores que, segundo a experiência dos produtores, seriam aptas para corte”.
Como as populações locais, também a floresta sofre os impactos dessa política. O resultado de uma pesquisa (Dinâmica do Desmatamento no Estado do Acre: 1988-2004) encomendada pelo próprio governo ao Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) dá-nos disso uma ideia.
A pesquisa concluiu que o desmatamento bruto no Acre passou de 6.149 km2 em 1988 para 16.618 km2 em 2004. A perda anual média seria de 650 km2 de florestas por ano neste período. No período 1994-1999 o incremento anual de desmatamento ficou em torno da média deste período (654 km2/ano). A partir do ano 2000, porém, observa-se um aumento de 34% no incremento anual médio do desmatamento, algo equivalente a 878 km2/ano. Ao que parece, o manejo mostrou-se tão hostil à floresta quanto o boi.
Quando os números desse estudo vieram à luz, o ex-governador Jorge Viana se apressou em defender o manejo e culpar pequenos agricultores. “O manejo não pode pagar essa conta. O que ocorreu foi um grande financiamento para pequenos agricultores, que investiram em seus roçados”. Interessa notar que essa crença no manejo não é partilhada por todos os membros do governo.
Ainda que ardoroso defensor do modelo, quando indagado sobre o manejo, Anselmo Forneck (Superintende do IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) respondeu: “E quanto ao manejo, o manejo, eu sempre digo: é uma incógnita, ainda. É uma atividade econômica em curso há muito pouco tempo e eu acho que é muito prematura uma opinião fechada em relação a este assunto (sic).” E concluía: “[...] a gente está correndo o risco de ter concentração fundiária e financeira através dos grandes projetos de manejo”.
Vale lembrar ainda que, de acordo com levantamento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a conclusão da BR-364 afetará 26 Tis, 10 diretamente e 16 indiretamente.

BR-317: corredor de exportação... e espoliação

A BR-317 ou Rodovia Interoceânica, por sua vez, impacta diretamente 7 Tis dos povos Manchineri e Jaminawa. Destas, duas estão definidas e cinco por definir. Sendo, no mínimo, 33 Tis impactadas pelas estradas, compreende-se o porquê de ainda restarem 17 Tis a homologar no estado e de o governo não realizar e/ou divulgar os relatórios dos impactos que sobre todas elas incidirão.
Não se trata apenas de questão estadual. É coisa maior, mais complexa, que só fica clara à medida que se compreende que a BR-317 é uma das principais órbitas da disputa hegemônica que diversos países travam para controle da Amazônia continental e da América do Sul.
É corrente entre alguns autores a tese de que a conclusão dessa estrada contraria interesses dos EUA, debilitando sua hegemonia no campo do comércio marítimo e do controle sobre os recursos naturais nessa parte da Amazônia. De fato, a integração convém a alguns países do Leste Asiático que, assim, teriam acesso a recursos naturais indispensáveis a sua indústria.
A diminuição dos gastos, tempo e distância em relação àquele mercado em expansão interessa também aos centros produtivos brasileiros. Acolhida como rota dileta para o mercado asiático, pensa-se ainda que a BR-317 teria todo seu trajeto florido com as sementes do desenvolvimento que o comércio que por aí passasse deixaria cair.
A tese supra, porém, ignora ou – no melhor dos casos – subestima as estratégias (consenso e coação, territorial e capitalista) e os sujeitos (agentes das sociedades civil e política, de dimensões locais, regionais, nacionais, continentais e planetárias) envolvidos na luta pelo domínio territorial na região.
A isso levantamos três objeções. Objeção 1) A conclusão dessa estrada faz parte do Eixo Peru-Brasil-Bolívia da Iniciativa para a Integração das Infraestruturas Regionais Sul-Americana (IIRSA), um megaprojeto desenhado pelos EUA para controle geopolítico de toda a América do Sul (CECENÃ et al, 2007: 9). Ele se assenta em dois documentos do BID: O Plano de Ação para a Integração da Infraestrutura da América do Sul e Um nuevo impulso a La integración regional em America Del Sur.
Dentre outras coisas, o projeto visa à dilapidação da soberania dos países da região e à abertura para a exploração/apropriação de seus recursos naturais por parte do grande capital (SOUZA, 2007b: 11). Decerto teríamos, sim, uma América do Sul integrada. Mas, ao que tudo indica: 1) forjada segundo interesses econômicos de grandes empresas; e 2) sob aprofundamento e atualização de sua condição de celeiro de bens naturais do centro desenvolvido. 
Objeção 2) Em 2006, com o programa Iniciativa para a Conservação da Bacia Amazônica (ICBA), os EUA tornaram mais clara e programática sua intenção de controlar a região amazônica. Através dele, as Agências Norte-Americanas para o Desenvolvimento Internacional (USAID) financiariam cinco consórcios para, sob seu controle, atuarem em áreas estratégicas da Bacia Amazônica, realizando pesquisas e levantamentos sobre os recursos naturais presentes na região e influenciando na criação de políticas conservacionistas. Valor do financiamento: 65 milhões.
Entre os consórcios, encontra-se o Governança Ambiental na Região MAP, composto por instituições das sociedades civil e política. Suas áreas de atuação situam-se ao longo das BRs 317 e 364, próximas às reservas extrativistas, e nas áreas centrais para a política ambiental acreana. Ressalte-se que o consórcio atuaria numa fronteira trinacional (Acre/Brasil, Madre de Dios/Peru e Pando/Bolívia) que é considerada um dos dez pontos mais ricos em biodiversidade do planeta (SOUZA, 2007a; SOUZA e PAULA, 2008a e 2008b).
Objeção 3) No final de 2008, o Estado do Acre, através do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Acre (ProAcre), firmou contrato de 150 milhões com o BM – 120 milhões do banco e 30 milhões de contrapartida local. Com previsão de duração de seis anos, o programa tem como foco de ação as margens das BRs 364 e 317 (tratadas, agora, como Zonas Especiais de Desenvolvimento – ZEDs) e pretende melhorar a qualidade de vida das comunidades mais distantes dos centros urbanos, levando-lhes saúde, educação e produção – coisa necessária louvável.
Mas, não casualmente, o programa pretende também promover o “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades de Conservação, Terras Indígenas e projetos de assentamento” – coisa discutível e perigosa. Sob os cânones (conservacionistas, mercantilistas, privatizantes, colonizadores) do BM, isso concorre para o aprofundamento da subordinação do Estado às instituições financeiras internacionais, para a promoção da territorialidade do capital e do desmantelando da territorialidade do homem da floresta. O resultado é uma reconfiguração territorial ainda maior e mais perversa que a que temos assistido até agora.
Dessa forma, a questão ambiental, que antes fora pedra de tropeço para a espoliação capitalista na região, hoje lhe serve como uma espécie de preparação de terreno. O Estado, em cujas mãos os grupos subalternos depositaram a tarefa de reverter o processo espoliador através das RESEX, é hoje um de seus principais indutores. O Acre tornou-se um estado de discurso verde e prática cinza.
Mesmo reconhecendo a luta hegemônica à qual estão sujeitos tais projetos e instituições (como o BID), fica patente que a integração via BR-317 não só não contraria – necessariamente – interesses dos EUA como conta entre seus planos para a região e o continente. Ainda através dela, eles buscam controlar o uso e a gestão dos recursos naturais aí abundantes.

Considerações finais

Não resta dúvida sobre o fato de que as estradas aqui em foco tenham aspectos positivos, como permitir que as populações do interior tenham acesso aos centros urbanos e aos serviços que - ainda que, em geral, precários - estes oferecem.
Destacamos, entretanto, que o conjunto de tudo o que vimos acima nos desautoriza tomá-las: como coroação da luta “dos de baixo” e afirmação de sua territorialidade; como promotoras do desenvolvimento e da conservação florestal; e, no que tange à BR-317, como mero corredor de exportação e contrária aos interesses estadunidenses.
Como vimos, essas estradas têm concorrido para desenhar e consolidar uma geopolítica alheia e avessa aos subalternos da região, planejada da escala local à continental por instituições financeiras estrangeiras e posta em marcha com esmero e entusiasmo por Estados da região.
No caso do Acre, a conformação dessa geopolítica é justificada na ideologia do “desenvolvimento sustentável” e amparada pela política ambiental. A esta compete abrir caminho jurídico ao capital, mercantilizar e privatizar os recursos naturais, desterritorializar (pelo consenso e/ou pela coação) o homem da floresta e embotar-lhe a identidade. O desrespeito às Tis é pressuposto e resultado do projeto. Após o terreno assim preparado, as estradas abrem o caminho físico, dando ao capital livre acesso às riquezas naturais.
Por isso, malgrado tanto otimismo e confusão em torno das BRs 364 e 317, até aqui elas se têm configurado como corredores de espoliação, apenas mais duas veias abertas na América Latina.

Referência bibliográfica

BECKER, B. K. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro: Gamond (2007).
CECENÃ, Ana Ester et al. Territorialidade de la dominación: la Integración de la Infraestrutura Regional Suldamericana (IIRSA)(2007).
CUNHA, Davilson Marques. As metamorfoses dos discursos e interesses em torno da Rodovia Interoceânica Brasil/Peru. UFAC/Brasil. Dissertação de Mestrado (2009).
FONSECA, Maria do Perpétuo Socorro Alves da. A certificação florestal e os vendedores de árvores: um estudo da Floresta Estadual do Antimary. UFAC/Brasil. Dissertação de Mestrado (2008).
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
MAIA, Ismael Dias. Concessões Florestais: um estudo sobre a Gestão de Florestas no Acre. Texto apresentado no 1º Encontro da Região Norte da SBS: Amazônia: em busca de novas abordagens (2008).
OLIVEIRA, Ermício Sena de. O movimento pelo desenvolvimento sustentável do Acre-Brasil (1988-2002): ciclos de protestos, capital social e rendimento democrático. Universidade de Salamanca. Tese de Doutorado (2005).
PAULA, Elder Andrade de. (Des)Envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários do progresso aos mercadores da natureza. EDUFAC.  Rio Branco (2005).
PAULA, Elder Andrade de. Movimento Sindical e luta pela terra: do romantismo da voz ao pragmatismo do mercado. In PAULA, Elder Andrade de e SILVA, Silvio Simione (org.). Trajetória da luta camponesa na Amazônia-acreana. Edufac: Rio Branco (2006).
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COSTA SOBRINHO, Pedro Vicente. Chico Mendes: Trajetória de uma liderança. In PAULA, Elder Andrade de e SILVA, Silvio Simione (org.). Trajetória da luta camponesa na Amazônia-acreana. EDUFAC. Rio Branco (2006).
SOUZA, Israel Pereira Dias de. “Reformas do Estado” e Discurso Florestânico no governo da “Frente Popular”: entre a epopeia e a tragédia. UFAC/Brasil. (Monografia de graduação em Ciências Sociais). Rio Branco (2005).
SOUZA, Israel Pereira Dias de. Soberania e “Governança Ambiental” na Amazônia Sul-Ocidental: um olhar sobre a “Iniciativa MAP”. UFAC/Brasil. Dissertação (2007).
SOUZA, Israel Pereira Dias de. Amazônia e hegemonias mundiais. Trabalho apresentado no I Simpósio de Desenvolvimento Regional da UFAC/Brasil (2007a).
SOUZA, Israel Pereira Dias de e PAULA, Elder Andrade de. Ambientalismo, Territorialização/Desterritorialização na Fronteira Trinacional Amazônica (Peru, Brasil e Bolívia). Texto apresentado no IV encontro da ANPPAS: “Mudanças ambientais globais: a contribuição da ANPPAS ao debate”, em Brasília (2008).
SOUZA, Israel Pereira Dias de e PAULA, Elder Andrade de. Iniciativa para a Conservação da Bacia Amazônica (ICBA): “Cooperação Internacional” e/ou “Ecoimperialismo”? Texto apresentado no IV encontro da ANPPAS: “Mudanças ambientais globais: a contribuição da ANPPAS ao debate”, em Brasília (2008a). 
SOUZA, Israel Pereira Dias de e PAULA, Elder Andrade de. “Estadocentrismo” ou “mercadocentrismo”: desafios aos movimentos sociais e à soberania na Amazônia. Texto apresentado no 1º Encontro da Região Norte da SBS: Amazônia: em busca de novas abordagens (2008b).

Sites e blogs visitados
La Amazonía del mañana Disponível em http://www.iadb.org/idbamerica/index.cfm?thisid=3850 Acesso agosto de 2009.
Una carretera que los ecologistas podrían apreciar Disponível em http://www.iadb.org/es/noticias/articulos/2006-01-01/una-carretera-que-los-ecologistas-podrian-apreciar,4949.html Acesso setembro de 2010.




[1] Trata-se de uma versão, ligeiramente modificada, do trabalho intitulado Ambientalismo e geopolítica na Amazônia-Acreana: da criação das RESEX aos corredores da espoliação, apresentado no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia no Rio de Janeiro, 2009. É um dos vários artigos que compõem o livro Democracia no Acre: notícias de uma ausência.
[2] Graduado em Ciência Política e Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre-UFAC/Brasil, membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO). E-mail: israelpolitica@gmail.com
[3] Hoje, de um modo um tanto singular, o governo afirma que a estrada está “concluída”. As aspas aqui se justificam em razão de haver quem diga que ela nunca chegou a ser totalmente asfaltada. Além do mais, nos últimos dias, o próprio governo começou a veicular uma propaganda segundo a qual haveria de “concluir e cuidar” da estrada. Todavia, como concluir algo já concluído?
[4] Com o fim da Guerra Fria e a abertura do regime pós-ditatorial no Brasil, não teria muito sentido manter o eixo segurança.
[5] Mesmo com a abertura da estrada, são indispensáveis os ramais. Até agora o governo tem negligenciado uns em benefício de outros. Estes, os mais centrais para sua política ambiental mercantilista.
[6] Esse foi um dos resultados a que chegou pesquisa recente sobre a Floresta Estadual do Antimary: FONSECA (2008). Os resultados da pesquisa são: 1) os habitantes da Floresta Estadual do Antimary não reconhecem como benefícios as mudanças advindas do manejo florestal empresarial que culminou com a certificação; 2) O manejo florestal empresarial da FEA criou um novo elemento entre as populações tradicionais: os vendedores de árvores; e 3) os vendedores de árvores são desprovidos do conceito de sustentabilidade, que inspirou a criação da certificação florestal no mundo.

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